Deleuze (C:217-218) – subjetivação, acontecimentos e mundo

Pelbart

— Em Foucault e em A dobra parece que os processos de subjetivação são observados mais atentamente que em outras de suas obras. O sujeito é o limite de um movimento contínuo entre um dentro e um fora. Que consequências políticas tem essa concepção do sujeito? Se o sujeito não pode ser uma questão resolvida na exterioridade da cidadania, pode ele instaurar esta cidadania na potência e na vida? Pode tornar possível uma nova pragmática militante, que seja ao mesmo tempo pietàs para o mundo e construção muito radical? Qual política pode prolongar na história o esplendor do acontecimento e da subjetividade? Como pensar uma comunidade sem fundamento mas potente, sem totalidade mas, como em Espinosa, absoluta?

— Pode-se com efeito falar de processos de subjetivação quando se considera as diversas maneiras pelas quais os indivíduos ou as coletividades se constituem como sujeitos: tais processos só valem na medida em que, quando acontecem, escapam tanto aos saberes constituídos como aos poderes dominantes. Mesmo se na sequência eles engendram novos poderes ou tornam a integrar novos saberes. Mas naquele preciso momento eles têm efetivamente uma espontaneidade rebelde. Não há aí nenhum retorno ao “sujeito”, isto é, a uma instância dotada de deveres, de poder e de saber. Mais do que de processos de subjetivação, se poderia falar principalmente de novos tipos de acontecimentos: acontecimentos que não se explicam pelos estados de coisa que os suscitam, ou nos quais eles tornam a cair. Eles se elevam por um instante, e é este momento que é importante, é a oportunidade que é preciso agarrar. Ou se poderia falar simplesmente do cérebro: o cérebro é precisamente este limite de um movimento contínuo reversível entre um Dentro e um Fora, esta membrana entre os dois. Novas trilhas cerebrais, novas maneiras de pensar não se explicam pela microcirurgia; ao contrário, é a ciência que deve se esforçar em descobrir o que pode ter havido no cérebro para que se chegue a pensar de tal ou qual maneira. Subjetivação, acontecimento ou cérebro, parece-me que é um pouco a mesma coisa. Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. É o que você chama de pietàs. É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo.

Original

[Excerto de DELEUZE, Gilles. Conversações 1972-1990. Tr. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 217-218]