Bouveresse2001
Uma das formas fundamentais de oposição entre o devir e o devindo, que se pode reconhecer no próprio domínio histórico, é aquela que corresponde à distinção, relativamente antiga e mais ou menos consagrada na tradição alemã, entre cultura e civilização. O autor de O Declínio do Ocidente acredita poder finalmente atribuir-lhe seu significado real: o de uma relação de sucessão cronológica que se repete sempre sob a mesma forma e com a mesma inevitabilidade. Cada cultura desemboca fatalmente numa civilização; e cada civilização representa o declínio e, por fim, a morte de uma cultura que a precedeu.
“O declínio do Ocidente”, escreve Spengler, “não significa nada menos que o problema da civilização. Estamos aqui diante de uma das questões fundamentais de toda história superior. O que é a civilização, compreendida como consequência lógico-orgânica, como realização e fim de uma cultura? Pois cada cultura tem sua própria civilização. Pela primeira vez, essas duas palavras, que até então designavam uma diferença indeterminada de natureza ética, são apreendidas num sentido periódico, como expressões de uma sequência orgânica rigorosa e necessária. A civilização é o destino inevitável de uma cultura. Aqui, atinge-se o ápice, de onde as últimas e mais difíceis questões da morfologia histórica podem encontrar solução. As civilizações são os estados mais extremos e artificiais de que uma espécie superior de homens seja capaz. Representam uma fase final; sucedem ao devir como o devindo, à vida como a morte, à evolução como a fixidez, ao campo e à infância da alma — como manifestam o Dórico e o Gótico —, como a velhice espiritual e a cidade mundial petrificada e petrificante. Constituem um fim, irrevogavelmente, mas sempre foram alcançadas com a mais profunda necessidade interna.”
A passagem da cultura para a civilização ocorreu na Antiguidade no século IV, no Ocidente no século XIX. Cultura e civilização opõem-se como a alma grega ao intelecto romano — prático, utilitário, irreligioso, alheio à arte e à filosofia; a paisagem rural povoada à cidade mundial desmedida, que reduz todo o resto do país ao estado de província; “o povo rico de formas intimamente ligado à terra” ao “novo nômade, um parasita, o habitante das grandes cidades, o homem dos fatos em estado puro, sem tradição, que surge numa massa flutuante informe, irreligioso, inteligente, improdutivo, com profunda aversão pela vida camponesa (e sua forma mais elevada, a nobreza rural), portanto um passo gigantesco em direção ao inorgânico, ao fim.”
O budismo, o estoicismo e o socialismo são produções características e “contemporâneas” da civilização, visões de mundo que “são capazes de tocar e transformar mais uma vez, em toda sua substância, uma humanidade em desaparecimento.” Representam, cada vez, a forma final da consciência civilizada, que esgotou definitivamente suas possibilidades de criação e organização e não é mais capaz de se opor ao processo inevitável da “dissolução gradual de formas mortas, tornadas inorgânicas.”
Aquele que alcançou a “altura atemporal”, o ponto de vista panorâmico a partir do qual o sentido da história se torna completamente claro, não pode mais nutrir ilusões consoladoras sobre as possibilidades reais que restam ao homem de hoje. “Até agora”, observa Spengler, “era livre esperar do futuro o que se quisesse. Onde não há fatos, reina o sentimento. No futuro, o dever de cada um será aprender daquilo que vem o que pode acontecer — e, portanto, o que vai acontecer, com a necessidade imutável de um destino, independente de ideais, esperanças e desejos pessoais. Se usarmos o termo discutível de liberdade, então não somos mais livres para realizar isto ou aquilo, mas o que é necessário ou nada. Experimentar isso como ‘bom’ caracteriza o homem dos fatos. Mas lamentá-lo ou culpá-lo não significa poder mudá-lo.”