Brun: O fogo

Sabe-se que, entre os Jônios, Tales de Mileto fizera da água o princípio de todas as coisas, enquanto Anaximandro escolhia o ar; Heráclito vê no fogo o elemento a partir do qual podem explicar-se os diferentes fenômenos do universo. Seria, senão simplificar, pelo menos ler o heraclitismo através das. lentes coloridas a que o desenvolvimento da química moderna nos habituou, ver no fogo um simples elemento de composição, a partir do qual se teriam engendrado as diferentes associações e decomposições das coisas e dos seres. Certamente que, em Heráclito, o fogo é um elemento por assim dizer físico: «O fogo transforma-se primeiro em mar; do mar, metade toma-se terra e a outra metade sopro ígneo. […] O fogo, sob o efeito do Logos divino que governa todas as coisas, transforma-se através do ar em umidade, germe de toda a ordem do universo e a que chama mar. Deste nascem de novo a terra, o céu e tudo o que contêm. Como o mundo volta de novo atrás e é devorado pelo fogo, explica-o claramente assim: a terra dissipa-se em mar e a sua massa é conservada segundo a mesma medida que possuía antes de se tornar terra.» (fgt. 31).

O fogo é, pois, aquilo de que tudo proveio e aquilo a que tudo regressa; daí a imagem de Heráclito: «Todas as coisas são trocadas contra o fogo e o fogo contra todas as coisas, do mesmo modo que as mercadorias são trocadas contra o ouro e o ouro contra as mercadorias.» (fgt. 90)

Mas o fogo é muito mais do que a substância primordial, ou que o elemento físico essencial. Com efeito, como bem sublinhou G. S. Kirk1, existe uma relação muito estreita entre o Logos (lógos), a harmonia (harmonia), o combate (polemos), a discórdia (heris), Deus, (theos), o Uno (hen), o fogo (pyr) e a sabedoria (sophon). Todos estes termos são, senão sinônimos rigorosamente intermutáveis, pelo menos noções que implicam uma mesma intuição central. O fogo de que fala Heráclito é, com efeito, não tanto um princípio de explicação racional como a substancialização do Logos. É «o raio que governa o universo» (fgt. 64), porque ele é o Logos fulgurante que ilumina o mundo e o governa. Além disso, o raio abrasa tudo o que toca e transforma em fogo aquilo em que cai. Por isso se pode dizer que o cosmos está em fogo porque é feito do fogo essencial que circula através de todo o ciclo dos elementos e é de fogo porque queima e é ele mesmo uma espécie de chama: «Este universo idêntico para todos jamais foi criado por algum deus, mas sempre foi, é e será um fogo eternamente vivo, acendendo-se com medida e extinguindo-se com medida.» (fgt. 30) O mundo em devir é, pois, um fogo que aparece, desaparece e se reacende; se nos é dito que «o fogo repousa na mudança» (fgt. 84 a) é porque as coisas tentam uma espécie de plenitude que lhes escapa e as suas tentativas sucessivas constituem precisamente o devir, que se manifesta no próprio coração do ser. Mais tarde, no Timeu, Platão dará uma bela definição do tempo, ao fazer dele «a imagem móvel da eternidade». Não se forçaria o pensamento de Heráclito vendo no fogo de que fala a imagem móvel do Logos que ilumina e a do Uno, do qual provieram todas as coisas e ao qual regressam.

Mas o mundo de Heráclito está em fogo por uma outra razão. O mundo está, com efeito, votado a um abrasamento final (ekpyrosis), a uma conflagração universal, na qual perecerá, não para soçobrar para sempre no nada, mas para reencontrar, neste incêndio gigantesco, o princípio de uma regeneração e de um renascimento. Como a Fénix, o mundo é chamado a renascer das cinzas em que deve consumir-se. Reencontramos aqui a imagem do ciclo e do círculo onde o fim e o começo se encontram. Consumindo todas as coisas, o fogo fá-las-á voltar ao seu princípio, por isso foi dito: «0 fogo, ao chegar, julgará todas as coisas e delas se apoderará.» (fgt. 66) Mas este incêndio cósmico2 não deverá considerar-se irremediável, porque sabemos que o universo é um fogo vivo, acendendo-se e extinguindo-se com medida.

No centro desta concepção encontra-se a ideia da existência de um Eterno Retomo do que nasce e do que desaparece. Trata-se de uma velha ideia grega que não é própria de Heráclito e que se reencontrará em Platão ou nos estoicos. Hoje representamos facilmente o tempo como uma linha recta proveniente do passado e dirigindo-se para o futuro. A irreversibilidade do tempo surge-nos mesmo com uma evidência tal que nos aparece como uma espécie de dado. Mas no Oriente e na Grécia o tempo era concebido à maneira de um círculo. A repetição regular do dia e da noite, das estações, como da posição dos planetas e das estrelas parecem impelir a ver no tempo uma espécie de ciclo, o que explica as imagens muito conhecidas do círculo do Zodíaco e da Roda das existências. O Grande Ano designava o período de tempo findo o qual os mesmos acontecimentos se deviam reproduzir. Os cálculos propostos para medir o Grande Ano em anos ordinários variam conforme os autores, mas, segundo uma tradição, Heráclito tê-lo-ia avaliado em 10 800 anos solares. Este número fora provavelmente obtido multiplicando 360 por 30. De qualquer modo, representa o lapso de tempo que decorre entre o nascimento do mundo e a sua dissolução no fogo, prelúdio de novo nascimento.

Portanto, dado que o começo e o fim do Grande Ano coincidem no abrasamento cósmico, que purifica e restaura, a conflagração universal não é uma mera catástrofe de carácter apocalíptico, é também uma apoteose, pois dela surge um mundo novo. Ainda aqui ,se verifica que «a estrela que sobe e a que desce são uma e a mesma». Convém acentuar a importância do fragmento 66, no qual Heráclito diz: «O fogo é saciedade e carência. A carência é a organização (diakosmesis) do mundo segundo a sua lei, mas o abrasamento (ekpyrosis) do mundo é saciedade. Com efeito, acrescenta Hipólito, que fornece o texto, Heráclito diz que o fogo julgará todas as coisas e delas se apropriará.» (fgt. 60) Importa acentuar bem que Heráclito fala da organização do mundo como de uma carência e vê no seu abrasamento plenitude e abundância. Poderia parecer paradoxal definir a organização como privação e a catástrofe como o que completa. Mas o abrasamento geral é uma elevação que se alimenta de ruínas. No fogo vêm unir-se e fundir-se a carência inicial e a saciedade final, é aquilo de onde tudo parte e a que tudo regressa. Por isso, a catástrofe é uma conclusão, conclusão do ritmo do Eterno Retomo e conclusão em que o nascimento de amanhã provém da morte de hoje.

Tal visão do mundo poderia alimentar as especulações dos erostratismos que cultivam o donjuanismo da catástrofe e veem na própria destruição a mais alta expressão da criação. Não declarava Mikhaïl Bakounine: «A alegria da destruição é ao mesmo tempo a da criação?» Mas, precisamente, a filosofia de Heráclito não é um convite às aventuras nos destroços, porque permanece uma filosofia do Logos que nos impele, não à apologia da catástrofe, mas à meditação sobre o Sentido que preside à unidade do múltiplo. A conflagração universal de que fala o Efésio é uma ascensão ao princípio de onde todos os seres partem de novo, peregrinos que são do vasto circuito da existência.


  1. Cf. G. S. KIRK, Heraclitus: The Cosmic Fragments, nova ed., Cambridge, 1964, e o artigo do mesmo autor: «Logos, harmonie, lutte, dieu et feu», in Revue philosophique, 1957, p. 289: cf. igualmente sobre este tema: HEIDEGGER, Essais et Conférences, trad. André PRÉAU, Paris, 1958, p. 333; trad. em português 

  2. Certos comentadores pensam que a teoria do abrasamento universal não deve atribuir-se a Heráclito, mas apenas aos estoicos; em sua opinião esta ideia teria sido tardiamente incluída no heraclitismo e os fragmentos em que dela se fala conteriam glosas tardias. Sobre o assunto cf. G. S. KIRK, loc. cit., p. 335 sq. 

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