O discurso comum da bioética, fundado nos pressupostos especialmente eleitos, que não naturais, para a sua fundamentação 1, é de uma manifesta precaridade, pois tais pressupostos, ao que parece voluntariamente, são, salvo mitigadamente no Personalismo, de índole não ontológica, ficando, assim, necessariamente, de fora exactamente o que de fundamental está em causa: o ser do ser vivo, ou seja, precisamente, o ser vivo enquanto ser vivo, não apenas enquanto ser ou enquanto vivo, mas enquanto ser e vivo, que é o que o ser vivo é, nisso que o distingue dos demais seres; fora isto, é tão ser quanto os outros, sem qualquer diferença própria relevante do ponto de vista em causa, exactamente o biológico. Se sobre o ser vivo se pensar tudo menos o seu mesmo ser, poder-se-á obter uma série de conclusões interessantíssimas acerca de tudo o que foi pensado, menos acerca do que interessa fundamentalmente nisso e relativamente a isso que está em causa e que é obviamente o seu ser.
De que serve pensar tudo o que é acrescentado ao ser do vivente, enquanto tal, se este mesmo, enquanto propriamente ser vivente, não é pensado? Note-se que não se trata de pensar o ser independentemente de ser vivente ou o vivente independentemente de ser e de ser como vivente, mas necessariamente isso que é o ser vivente. Todo o pensamento que separe um de outro não pensa o ser vivo, pelo que não pode ser uma forma de pensamento biológico, mas apenas de pensamento meramente físico, ou outra qualquer. Apesar de depender de uma tradição recente profundamente reducionista, o que precisamente a biologia não pode ser é reducionista, reduzindo, por vezes logo à partida, o âmbito da sua pesquisa ou as virtualidades heurísticas da inteligência humana como possível instrumento de tal pesquisa, sob pena de nem bio-logia ser. Escusado será dizer que grande parte do que passa por biologia e mesmo por biologia científica (bem como todas as suas decorrências, puramente científicas e/ou aplicadas, mesmo no âmbito dos cuidados de saúde) não é biologia alguma, mas apenas uma qualquer forma sucedânea redutora: em vez de pensar a vida na sua máxima realidade possível, sem quaisquer restrições que não sejam ditadas pela eliminação como não pertinentes de realidades provadamente não vivas, reduz a realidade pensável como vida a postulados que não derivam de sua mesma investigação, mas de âmbitos que nada respeitam à biologia, sejam ideológicos, religiosos ou de outra qualquer tipologia, sempre política, sempre de perversão do poder político.
Isto implica que uma qualquer bioética que queira ser digna deste nome tenha de partir de uma biologia que seja não redutora; caso contrário, estará a reflectir não sobre a realidade biológica, mas sobre uma qualquer redução dessa mesma realidade e tudo o que disser participa da mesma irrealidade redutora da ciência base sobre que reflecte. Tememos que grande parte do discurso de bioética existente padeça deste defeito, dado que assume acriticamente os dados de formas de biologia redutora, precisamente sem os criticar à luz de uma biologia não redutora, não podendo senão chegar a conclusões que, se bem que eventualmente fiéis ao seu substracto preconceptual epistemológico, são profundamente infiéis à realidade biológica, uma vez que os dados de que partem não se referem a esta mesma realidade, mas a uma sua qualquer redução, por definição irreal.
Especificamente, no que diz respeito ao homem, dado que a bioética existente é uma disciplina antropológica e tão só (ou seria uma outra forma redutora, porque necessariamente “moralizadora”, de biologia e de ecologia gerais), que interesse tem pensar todas as dimensões da mesma entidade humana menos a sua dimensão própria de entidade viva especificamente humana? Uma bioética que não pense o bios do homem, isto é, o seu ser como ser vivo, o homem como entidade biológica, não é uma bio-ética, mas uma outra coisa qualquer. Há, pois, que pensar, antes de mais e sempre, o ser do homem como ser biológico, isto é, como biológico e como ser, mas como ser cuja entidade não se reduz à sua biologia, ou, melhor, como ser cuja biologia própria não se reduz a uma mera materialidade diferenciada biologicamente, como nas demais espécies, mas a uma bioentidade que é capaz de se pôr a si mesma como objecto de seu próprio pensamento, assim, propriamente bio-lógico, de uma bioentidade que só o é porque serve de suporte a uma capacidade intelectiva que lhe dá o acesso a si mesma, acesso que é propriamente a colheita de seu sentido como entidade viva, isto é, como biologia em acto, o que não acontece com qualquer outra espécie. Todo o acesso a qualquer forma de pensamento acerca do que é, na universalidade e particularidade do ser, logo, acerca da própria biologia – seu sub-conjunto -só é possível porque há uma intelectividade possível e uma inteligência próprias do homem, sustentadas pela sua mesma biologia, mas que não são a esta redutíveis ou nunca a concreta biologia teria dado origem a esta outra de si própria como ciência, isto é, se houvesse uma redução do pensamento à biologia, não haveria diferença alguma entre a biologia e o pensamento, pelo que, sendo aquela primeira quer cronológica quer ontologicamente, segundo as mesmas teses de uma biologia materialista, e não havendo diferenciação real, o pensamento nunca teria sido. Ilógica e inexplicavelmente, todas as correntes materialistas, em perfeita coerência com os ilógicos fundamentos das doutrinas que defendem, querem fazer derivar a diferença própria do pensamento de algo puramente diverso do mesmo pensamento, violando assim, como, aliás, todo o evolucionismo não teleológico, a mais básica das regras lógicas acerca da possibilidade da evolução ontológica, segundo a qual, não é possível explicar o mais pelo menos, sem recurso a formas de pensamento sempre necessariamente mágicas, ainda que muito bem disfarçadas de ciência. É claro que, não sendo possível, segundo linhas causalistas monolineares do menos para o mais, explicar o aparecimento de maior riqueza ontológica, se recorre ao expediente mágico do acaso ou também ao não menos mágico expediente da qualificação pela simples quantificação.
[…]O grande inimigo, e inimigo porque adversário mortal, de uma bioética que vise realmente o bem comum da espécie que é suposto servir reside imediatamente neste problema epistemológico do reducionismo de uma das disciplinas base de que se serve – a fundamental, aliás – e que anula, também imediatamente, o valor ou sentido ontológico próprio de cada entidade biológica, adjudicando o seu ser próprio (e realmente insubstituível no que é) a outros seres, seus substitutos, numa degradação crono-ontológica que esvazia de sentido toda a biologia, porque anula o que é realmente próprio das entidades que estuda. Este mecanismo redutor implica que o objecto próprio da biologia seja vazio, melhor, que a biologia como estudo redutor esvazie o seu objecto, à medida precisamente que o vai estudando, dado que este estudo consiste na redução do que o objecto é ao que são – foram – as suas causas, de onde tudo provém, sendo que, nesta linha de pensamento, nada mais pode vir de qualquer outro sítio que não das ditas causas analépticas, dado que não há outras.
Este problema, cuja formulação é necessariamente abstracta, é tudo menos um problema abstracto, no sentido popular do termo, dado que, quando se constitui uma qualquer disciplina, é suposto que essa disciplina disponha de um objecto a estudar. Ora, uma biologia redutora destrói o que é o seu possível objecto, enquanto realidade própria, pelo que a bioética corre o sério risco de ser uma “ética” ou uma deontologia ou um qualquer tratado de direito aplicado que pensa uma realidade que não existe realmente, o que, de facto, é o que se tem vindo a registar, pois a realidade biológica pensada não é exactamente aquela que deveria ser pensada, mas outras suas substitutas de etiologia política, isto é, fruto de construções elaboradas por conjuntos de entidades humanas.
- Damos como conhecidas as principais doutrinas: Principialismo, Deontologismo, Teleologismo, Consensualismo, Utilitarismo, Contratualismo ético, Personalismo: ontologia da pessoa e bem-comum, etc.[↩]