Abstração (Gabriel Marcel)

GMarcel1940

No entanto, por uma anomalia que se dissipa com a reflexão, quanto mais eu enfatizar essa objetividade das coisas, cortando o cordão umbilical que as liga à minha existência, ao que chamei de minha presença organo-psíquica em mim mesmo — quanto mais eu afirmar a independência do mundo em relação a mim, sua radical indiferença ao meu destino, aos meus próprios fins — mais esse mundo, assim proclamado como o único real, se converterá em um espetáculo sentido como ilusório, um imenso filme documentário oferecido à minha curiosidade, mas que, no final das contas, se anula pelo simples fato de me ignorar.

Quero dizer com isso que o universo tende a se aniquilar na mesma medida em que me submerge — e é isso, creio, que se esquece toda vez que se tenta esmagar o homem sob o peso dos dados astronômicos.

Isso equivale a dizer que nos lançamos na pura abstração assim que, por medo do antropocentrismo, tentamos romper o nexo que me une ao universonexo da minha presença no mundo, sendo meu corpo apenas esse nexo tornado manifesto.

Reconheço que isso pode dar origem a mal-entendidos bastante graves. Não se trata de postular uma espécie de dependência do universo em relação a mim; isso seria recair em um subjetivismo exacerbado. O que proponho aqui é, antes de tudo, a prioridade do existencial em relação ao ideal, acrescentando imediatamente que o existencial se refere inevitavelmente ao ser encarnado, ou seja, ao fato de estar-no-mundo.

Essa última expressão, que não era aceita na filosofia — ou pelo menos não o era antes de Heidegger — traduz, penso eu, adequadamente algo que, como se compreendeu, deve ser entendido como uma participação, e não como uma relação ou comunicação.

Esse termo “participação”, que usei continuamente entre 1910 e 1914 em um sentido bastante diferente daquele conferido por Platão, reaparece hoje na filosofia de M. Lavelle, que em certos aspectos me parece muito próxima da minha.

O problema árduo que eu me colocava já naquela época era saber como se pode chegar a pensar essa participação sem desnaturá-la, ou seja, sem convertê-la em uma relação objetiva.

Sem dúvida, há muito pouco a aproveitar desses escritos hesitantes 1 que nunca foram publicados em sua totalidade e provavelmente nunca o serão.

Mas devo dizer que não mudei no essencial, embora a terminologia que uso hoje seja muito diferente daquela a que recorria naquela época.

 

 

  1. alguns dos quais foram publicados em 1963 sob o título Fragments philosophiques (Nouvelaerts, Louvain/Paris)[]