A teologia de um povo reflete o estado de seu traseiro na infância

Aldous Huxley. A Ilha.

– Não, não é puro sadismo. É sadismo aplicado — disse o dr. MacPhail. — É sadismo por uma razão mais dissimulada, sadismo a serviço de um ideal, sadismo como uma convicção religiosa. Aliás, as relações entre a teologia e o castigo corporal na infância são um assunto que merece um estudo histórico a respeito — concluiu, dirigindo-se para Will. — Minha teoria é que, se as crianças de qualquer parte são sistematicamente flageladas, crescem com a impressão de que Deus é o Totalmente Diverso. Não é esse o argot em moda no seu lado do mundo? Se, pelo contrário, as crianças são criadas sem serem sujeitas à violência física, consideram Deus como coisa imanente. A teologia de um povo reflete o estado de seu traseiro na infância. Tome como exemplo os hebreus e todos os bons cristãos da Idade da . Desde Jeová, desde o Pecado Original. Desde o Pai, infinitamente ultrajado, das ortodoxias romana e protestante, todos têm sido entusiastas flageladores de crianças. Enquanto isso, entre os budistas e os hindus, a educação sempre tem sido ministrada sem o uso da violência, sem o seviciamento de pequeninas nádegas. Daí o Tat Twam asi ou “Tu és Esse”; as mentes vindas da Mente não são divisíveis. Posso ainda citar o exemplo dos quacres, que ainda eram bastante heréticos para acreditar na “luz interior”. Que aconteceu? Cessaram de espancar seus filhos e, assim, tornaram-se a primeira seita de cristãos a protestar contra a instituição da escravatura.

– Mas o castigo corporal das crianças quase não é mais usado em nossos dias, e é exatamente neste momento que as explicações sobre o Totalmente Diverso estão em plena moda — argumentou Will.

O dr. MacPhail rebateu a objeção:

– Isso é simplesmente um caso de ação seguida de reação. Na segunda metade do século XIX a filantropia livre-pensadora se tornara tão forte que mesmo os bons cristãos foram por ela influenciados e cessaram de castigar os filhos. Não houve vergastadas nos traseiros das gerações mais jovens. Em consequência disso, deixaram de imaginar Deus como sendo o Totalmente Diverso e inventaram o “pensamento novo”, a “ciência cristã”, a “unidade” e todas as heresias semi-orientais, nas quais Deus é o Totalmente Idêntico. Esse movimento, que fora iniciado antes de William James, cada dia reúne maior número de adeptos. Porém, como toda tese tem sua antítese, depois de algum tempo essas heresias originaram a “neo-ortodoxia”. Abaixo o Totalmente Idêntico! Queremos a volta do Totalmente Diverso! Voltaram a Agostinho, a Martinho Lutero; em uma palavra, voltaram aos dois traseiros mais implacavelmente flagelados de toda a história do pensamento cristão. Leia as Confissões e a Conversa de mesa. Quando Agostinho, tendo sido espancado por seu professor, foi queixar-se aos pais, estes riram-se dele. Lutero foi sistematicamente chicoteado, não apenas por seu pai e professores, mas também por sua carinhosa mãe. Desde então, o mundo tem pago por essas cicatrizes que tinham nas nádegas. As monstruosidades que foram o prussianismo e o Terceiro Reich nunca teriam existido sem Lutero e sua teologia cheia de flagelações. Quanto à teologia de flagelação de Agostinho, Calvino conduziu-a a conclusões lógicas que foram inteiramente absorvidas por pessoas piedosas, tais como James MacPhail e Janet Cameron. Sua premissa maior é que Deus é o Totalmente Diverso e sua premissa menor é que “o homem é totalmente depravado”. Conclusão prática: “Faça nos traseiros de seus filhos aquilo que foi feito no seu”. É isso que o Pai do Céu tem feito nos traseiros da humanidade, desde o Pecado Original: chicoteado, chicoteado, chicoteado.