Lecourt: pessoa – do jurídico a Kant

nossa tradução

A prática jurídica não poderia prescindir do conceito de “pessoa” para regular, em novas bases, a transmissão de propriedades e nomes. O Código Civil testemunhará isso, que não deixará de fazer referência ao direito romano. Como poderia o indivíduo, doravante concebido como uma “átomo social”, aderir ativamente, como cidadão, à nova ordem jurídico-política, se não fosse incentivado a se manter, por algum motivo , enquanto autor de seu próprio papel? Era necessário que, à custa de um batismo filosófico, a “pessoa” se tornasse “humana”: afastada de todo apego à transcendência divina, ela cumpra sua função de ordem, anexando o indivíduo-cidadão como “sujeito” a “Humanidade”. Ela marca na intimidade da consciência do indivíduo a presença constrangedora do universal.

Vimos que Kant, melhor do que ninguém, foi capaz de avaliar os requisitos metafísicos de tal inovação. Para que esse sistema “se mantivesse”, era preciso arrancar a humanidade de sua simples existência empírica: sua universalidade afirmada terá assim a idealidade de um mundo “supra-sensível”, regido por puras leis morais. A noção de “pessoa humana” realiza o círculo que do direito leva à moralidade, e da moralidade reconduz ao direito pela invocação de uma “natureza humana” assim concebida; sua dignidade, declarada “absoluta”, inspira o sentimento ético por excelência: o respeito (Crítica da razão prática). Mas vimos que esse círculo e esse sentimento exigem o reforço de uma perspectiva religiosa, solicitando a “ racional” em um Deus legislador. Conhecemos as famosas fórmulas apresentadas pelo filósofo nos Fundamentos da Metafísica dos Costumes (1785). Baseando-se na oposição legal de coisas e pessoas, ele escreveu (seção IIe): “Os seres razoáveis são chamados de pessoas, porque sua natureza já os designa como fins em si mesmos, dito de outro modo, como algo que não pode ser usado simplesmente como meio, algo que, por conseguinte, limita toda a nossa capacidade de agir como acharmos melhor (e que é um objeto de respeito)”. Lembro da fórmula do imperativo categórico sobre o qual ele concluiu: “Ajas de tal maneira que trates a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como um fim, e jamais simplesmente como um meio”. Kant tomara muito cuidado para isolar como “inteligível” – mas incognoscível – o mundo das leis morais, do qual cada ser humano era suposto, enquanto pessoa, experimentar as injunções sob a forma de imperativos categóricos.

Consideradas em toda a sua amplitude, essas questões se referem à maneira pela qual as normas vitais se delineiam quando são encontradas, como assim deve ser, prolongadas e repensadas pelas normas sociais que carregam os valores da existência humana.

Original

La pratique juridique ne pouvait se passer de la notion de «personne» pour régler, sur de nouvelles bases, la transmission des biens et des noms. Le Code civil en témoignera, qui ne négligera pas de faire réfërence au droit romain. Comment l’individu, désormais conçu comme «atome social », pourrait-il adhérer activement, en tant que citoyen, à l’ordre juridico-politique nouveau s’il n’était pas incité à se tenir luimême, à quelque titre, pour l’auteur de son propre rôle? Il fallait qu’au prix d’un baptême philosoPhique la «personne» devint «humaine»: coupée de toute attache à la transcendance divine, elle remplit sa fonction d’ordre en rattachant l’individu-citoyen en tant que «sujet» à «l’humanité ». Elle marque dans l’intimité de la conscience de l’individu la présence contraignante de l’universel.

On a vu que Kant, mieux que quiconque, a su évaluer les exigences métaphysiques d’une telle innovation. Pour que « tienne» un tel système, il fallait arracher l’humanité à sa simple existence empirique: son universalité affirmée aura ainsi l’idéalité d’un monde « supra-sensible» régi par de pures lois morales. La notion de «personne humaine» réalise le cercle qui du droit conduit à la morale, et de la morale reconduit au droit par l’invocation d’une «nature humaine» ainsi conçue; sa dignité, déclarée «absolue », inspire le sentiment éthique par excellence: le respect (Critique de la Raison pratique). Mais on a vu que ce cercle et ce sentiment appellent le renfort d’une perspective religieuse en sollicitant la «foi rationnelle» dans un Dieu législateur. On connaît les célèbres formules qu’avait avancées le philosophe dans les Fondements de la métaplrysique des moeurs (1785). Tablant sur l’opposition juridique des choses et des personnes, il écrivait (IIe section) : « Les êtres raisonnables sont appelés des personnes, parce que leur nature les désigne déjà comme des fins en soi, autrement dit comme quelque chose qui ne peut pas être employé simplement comme moyen, quelque chose qui, par suite, limite d’autant toute faculté d’agir comme bon nous semble (et qui est un objet de respect). » Je rappelle la formule de l’impératif catégorique sur lequel il concluait: «Agis de telle sorte que tu traites l’hurnanité aussi bien dans ta personne que dans la personne de tout autre, toujours en même ternps comme une fin, et jamais simplement cornme un moyen. » Kant avait pris le plus grand soin d’isoler comme «intelligible» – mais inconnaissable – le monde des lois morales dont chaque être humain était supposé, en tant que personne, éprouver les injonctions sous formes d’impératifs catégoriques.

Considérées dans toute leur ampleur, ces questions portent sur la façon dont les normes vitales prennent tournure lorsqu’elles se trouvent, cornrne il se doit, prolongées et repensées par les normes sociales qui portent les valeurs de l’existence humaine.

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