Hume: Dos motivos que influenciam a vontade

Danowski

Nada é mais comum na filosofia, e mesmo na vida corrente, que falar no combate entre a paixão e a razão, dar preferência à razão e afirmar que os homens só são virtuosos quando se conformam a seus preceitos. Afirma-se que toda criatura racional é obrigada a regular suas ações pela razão; e se qualquer outro motivo ou princípio disputa a direção de sua conduta, a pessoa deve se opor a ele até subjugá-lo por completo ou, ao menos, até torná-lo conforme àquele princípio superior. A maior parte da filosofia moral, seja antiga ou moderna, parece estar fundada nesse modo de pensar. E não há campo mais vasto, tanto para argumentos metafísicos como para declamações populares, que essa suposta primazia da razão sobre a paixão. A eternidade, a invariabilidade e a origem divina da razão têm sido retratadas nas cores mais vantajosas; a cegueira, a inconstância e o caráter enganoso da paixão foram salientados com o mesmo vigor. Para mostrar a falácia de toda essa filosofia, procurarei provar, primeiramente, que a razão, sozinha, não pode nunca ser motivo para uma ação da vontade; e, em segundo lugar, que nunca poderia se opor à paixão na direção da vontade.

O entendimento se exerce de dois modos diferentes, conforme julgue por demonstração ou por probabilidade; isto é, conforme considere as relações abstratas entre nossas ideias ou as relações entre os objetos, que só conhecemos pela experiência. Acredito que dificilmente se afirmará que a primeira espécie de raciocínio pode ser, sozinha, a causa de uma ação. Como seu domínio próprio é o mundo das ideias, e como a vontade sempre nos põe no mundo das realidades, a demonstração e a volição parecem estar, por esse motivo, inteiramente separadas uma da outra. […] O raciocínio abstrato ou demonstrativo, portanto, só influencia nossas ações enquanto dirige nosso juízo sobre causas e efeitos. Isso nos leva à segunda operação do entendimento.

É evidente que, quando temos a perspectiva de vir a sentir dor ou prazer por causa de um objeto, sentimos, em consequência disso, uma emoção de aversão ou de propensão, e somos levados a evitar ou a abraçar aquilo que nos proporcionará esse desprazer ou essa satisfação. Também é evidente que tal emoção não se limita a isso; ao contrário, faz que olhemos para todos os lados, abrangendo qualquer objeto que esteja conectado com o original pela relação de causa e efeito. É aqui, portanto, que o raciocínio tem lugar, ou seja, para descobrir essa relação; e conforme nossos raciocínios variam, nossas ações sofrem uma variação subsequente. Mas é claro que, neste caso, o impulso não decorre da razão, sendo apenas dirigido por ela. É a perspectiva de dor ou prazer que gera a aversão ou propensão ao objeto; e essas emoções se estendem àquilo que a razão e a experiência nos apontam como as causas e os efeitos desse objeto. Nunca teríamos o menor interesse em saber que tais objetos são causas e tais outros são efeitos, se tanto as causas como os efeitos nos fossem indiferentes. Quando os próprios objetos não nos afetam, sua conexão jamais pode lhes dar uma influência; e é claro que, como a razão não é senão a descoberta dessa conexão, não pode ser por meio dela que os objetos são capazes de nos afetar.

Uma vez que a razão sozinha não pode produzir nenhuma ação nem gerar uma volição, infiro que essa mesma faculdade é igualmente incapaz de impedir uma volição ou de disputar nossa preferência com qualquer paixão ou emoção. Essa é uma consequência necessária. A única possibilidade de a razão ter esse efeito de impedir a volição seria conferindo um impulso em direção contrária à de nossa paixão; e esse impulso, se operasse isoladamente, teria sido capaz de produzir a volição. Nada pode se opor ao impulso da paixão, ou retardá-lo, senão um impulso contrário; e para que esse impulso contrário pudesse alguma vez resultar da razão, esta última faculdade teria de exercer uma influência original sobre a vontade e ser capaz de causar, bem como de impedir, qualquer ato volitivo. Mas se a razão não possui uma influência original, é impossível que possa fazer frente a um princípio com essa eficácia, ou que possa manter a mente em suspenso por um instante sequer. Vemos, portanto, que o princípio que se opõe a nossa paixão não pode ser o mesmo que a razão, sendo assim denominado apenas em um sentido impróprio. Quando nos referimos ao combate entre paixão e razão, não estamos falando de uma maneira filosófica e rigorosa. A razão é, e deve ser, apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir e obedecer a elas.

Original

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