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Eco: Construir o Inimigo

terça-feira 12 de janeiro de 2021

  

Ter um inimigo é importante, não apenas para definir a nossa identidade, mas também para arranjarmos um obstáculo em relação ao qual seja medido o nosso sistema de valores, e para mostrar, no afrontá-lo, o nosso valor. Portanto, quando o inimigo não existe, há que construí-lo. Veja-se a generosa flexibilidade com que os naziskins de Verona elegiam como inimigo quem quer que não pertencesse ao seu grupo, para se reconhecerem como grupo. Eis que, nesta ocasião, não nos interessa tanto o fenômeno quase natural de identificar um inimigo que nos ameaça, quanto o processo de produção e demonização do inimigo.


Parece que não se pode passar sem o inimigo. A figura do inimigo não pode ser abolida dos processos civilizacionais. A necessidade é congênita mesmo do homem brando e amigo da paz. Simplesmente, nestes casos, a imagem do inimigo é transferida de um objecto humano para uma força natural ou social, que de algum modo nos ameaça, e que tem de ser vencida, seja ela a exploração capitalista, a poluição ambiental, a fome do Terceiro Mundo. Mas, mesmo que estes sejam casos «virtuosos», como nos recorda Brecht  , também o ódio à injustiça desfigura o rosto.

A ética, portanto, é impotente face à necessidade ancestral de ter inimigos? Direi que a instância ética se sobrepõe, não quando se finge que não existem inimigos, mas quando procuramos compreendê-los, colocar-nos no seu lugar.


A visão mais pessimista a este propósito é a de Sartre  , em Huis Clos. Por um lado, só nos podemos reconhecer a nós próprios em presença de um Outro, e sobre isto regulam-nos as regras de convivência e de mansuetude. Todavia, de bom grado achamos este Outro insuportável, porque, nalguma medida, não é nós. Desde modo, reduzindo-o a inimigo, construímos o nosso inferno na Terra. Quando Sartre fecha três defuntos, que se conheciam em vida, num quarto de hotel, um destes compreende a tremenda verdade:

Vereis como é uma coisa parva: parva como um nabo. Não há tortura física, não é verdade? No entanto, nós estamos no inferno. E mais ninguém deve vir aqui. Ninguém. Ficaremos até ao fim, nós três apenas, juntos [...]. Falta o carrasco [...]. Fizeram uma economia de pessoal. Eis tudo [...]. O carrasco é cada um de nós para os outros dois.

[ECO, Umberto. Construir o inimigo e outros escritos ocasionais. Tr. Jorge Vaz de Carvalho. Lisboa: Gradiva, 2011]