Meillassoux (AF:3-5) – a negação do realismo

Tradução parcial

A tese que defendemos é, portanto, dupla: por um lado, reconhecemos que o sensível só existe como relação do sujeito com o mundo; mas, por outro lado, mantemos que as propriedades matematizáveis do objeto estão isentas da restrição de tal relação e que estão efetivamente no objeto da maneira como as concebo, se estou em relação a esse objeto ou não. Mas antes de prosseguirmos para justificar esta tese, é necessário entender em que sentido isso pode parecer absurdo para um filósofo contemporâneo – e erradicar a fonte precisa desse aparente absurdo.

A razão pela qual esta tese parece quase insuportável para um filósofo contemporâneo é porque é resolutamente pré-crítica – parece representar uma regressão à postura “ingênua” da metafísica dogmática. Pois o que acabamos de afirmar é que o pensamento é capaz de discriminar entre as propriedades do mundo que são uma função de nossa relação com ele e as propriedades do mundo como ele é ‘em si’, subsistindo indiferentemente de nossa relação com ele. Mas todos sabemos que essa tese se tornou indefensável, e isso não apenas desde Kant, mas também desde BerkeleyOn this point, see Alain Renaut’s analysis of Kant’s letter to Marcus Hertz dated 21 February 1772 in Renault (1997), Kant aujourd’hui (Paris: Aubier), ch. 1, pp. 53–77. For Berkeley’s critique of the distinction between primary and secondary qualities see Berkeley (1998), A Treatise Concerning the Principles of Human Understanding, J. Dancy (ed.) (Oxford: Oxford University Press), Part One, Sections 8–10.. É uma tese indefensável porque o pensamento não pode sair de si mesmo para comparar o mundo como ele é “em si”. o mundo como é ‘para nós’ e, assim, distinguir o que é uma função de nossa relação com o mundo e o que pertence apenas ao mundo. Tal empreendimento é efetivamente autocontraditório, pois no momento em que pensamos em uma propriedade como pertencente ao mundo em si, é precisamente a última que estamos pensando e, consequentemente, esta propriedade revela-se ser essencialmente amarrada à nossa pensamento sobre o mundo. Não podemos representar o ‘em si’ sem que ele se torne ‘para nós’; ou, como Hegel coloca de forma divertida, não podemos ‘rastejar até’ o objeto ‘por trás’ para descobrir o que ele é em si Cf. Hegel (1977), The Phenomenology of Spirit, tr. A.V. Miller (Oxford: Oxford University Press), Introduction, §85, p.54 (translation modified – translator). – o que significa que não podemos saber nada que esteja além de nossa relação com o mundo. Consequentemente, as propriedades matemáticas do objeto não podem ser isentas da subjetivação que é a condição prévia para as propriedades secundárias: elas também devem ser concebidas como dependentes da relação do sujeito com o dado – como uma forma de representação para o kantiano ortodoxo ou como um ato de subjetividade para o fenomenólogo, ou como uma linguagem formal específica para o filósofo analítico, e assim por diante. Mas, em todo caso, qualquer filósofo que reconheça a legitimidade da revolução transcendental – qualquer filósofo que se veja como “pós-crítico” e não como dogmático – sustentará que é ingênuo pensar que somos capazes de pensar em algo – mesmo se é uma determinação matemática do objeto – enquanto abstraindo do fato de que invariavelmente somos nós que estamos pensando nisso.

Observemos – pois teremos ocasião de voltar a esse ponto – que a revolução transcendental consistiu não apenas em desqualificar o realismo ingênuo da metafísica dogmática (pois o idealismo subjetivo de Berkeley já havia conseguido isso), mas também e sobretudo em redefinir a objetividade fora do contexto dogmático. Na estrutura kantiana, a conformidade de uma declaração com o objeto não pode mais ser definida em termos de ‘adequação’ ou ‘semelhança’ de uma representação com um objeto que supostamente subsiste ‘em si’, uma vez que esse ‘em si’ é inacessível. A diferença entre uma representação objetiva (como ‘o sol aquece a pedra’) e uma representação ‘meramente subjetiva’ (como ‘a sala parece quente para mim’) é, portanto, uma função da diferença entre dois tipos de representação subjetiva: aqueles que podem ser universalizados e, portanto, têm o direito de serem experimentados por todos e, portanto, “científicos”, e aqueles que não podem ser universalizados e, portanto, não podem pertencer ao discurso científico. Desse ponto em diante, a intersubjetividade, o consenso de uma comunidade, suplanta a adequação entre as representações de um sujeito solitário e a própria coisa como o verdadeiro critério de objetividade e de objetividade científica, mais particularmente. A verdade científica não é mais o que se conforma com um em si supostamente indiferente à maneira como é dada ao sujeito, mas o que é suscetível de ser dado como compartilhado por uma comunidade científica.Tais considerações revelam até que ponto a noção central da filosofia moderna desde Kant parece ser a da correlação. Por “correlação”, entendemos a ideia segundo a qual só temos acesso à correlação entre pensar e ser, e nunca a um dos termos considerados separados do outro. A partir de agora, chamaremos correlacionismo qualquer corrente de pensamento que mantenha o caráter insuperável da correlação assim definida. Consequentemente, torna-se possível dizer que toda filosofia que nega o realismo ingênuo se tornou uma variante do correlacionismo.

Inglês

The thesis we are defending is therefore twofold: on the one hand, we acknowledge that the sensible only exists as a subject’s relation to the world; but on the other hand, we maintain that the mathematizable properties of the object are exempt from the constraint of such a relation, and that they are effectively in the object in the way in which I conceive them, whether I am in relation with this object or not. But before we proceed to justify this thesis, it is necessary to understand in what regard it may seem absurd to a contemporary philosopher – and to root out the precise source of this apparent absurdity.

The reason why this thesis is almost certain to appear insupportable to a contemporary philosopher is because it is resolutely pre-critical – it seems to represent a regression to the ‘naïve’ stance of dogmatic metaphysics. For what we have just claimed is that thought is capable of discriminating between those properties of the world which are a function of our relation to it, and those properties of the world as it is ‘in itself’, subsisting indifferently of our relation to it. But we all know that such a thesis has become indefensible, and this not only since Kant, but even since Berkeley.[[On this point, see Alain Renaut’s analysis of Kant’s letter to Marcus Hertz dated 21 February 1772 in Renault (1997), Kant aujourd’hui (Paris: Aubier), ch. 1, pp. 53–77. For Berkeley’s critique of the distinction between primary and secondary qualities see Berkeley (1998), A Treatise Concerning the Principles of Human Understanding, J. Dancy (ed.) (Oxford: Oxford University Press), Part One, Sections 8-10.]] It is an indefensible thesis because thought cannot get outside itself in order to compare the world as it is ‘in itself’ to the world as it is ‘for us’, and thereby distinguish what is a function of our relation to the world from what belongs to the world alone. Such an enterprise is effectively self-contradictory, for at the very moment when we think of a property as belonging to the world in itself, it is precisely the latter that we are thinking, and consequently this property is revealed to be essentially tied to our thinking about the world. We cannot represent the ‘in itself’ without it becoming ‘for us’, or as Hegel amusingly put it, we cannot ‘creep up on’ the object ‘from behind’ so as to find out what it is in itself4 – which means that we cannot know anything that would be beyond our relation to the world. Consequently, the mathematical properties of the object cannot be exempted from the subjectivation that is the precondition for secondary properties: they too must be conceived as dependent upon the subject’s relation to the given – as a form of representation for the orthodox Kantian, or as an act of subjectivity for the phenomenologist, or as a specific formal language for the analytical philosopher, and so on. But in every case, any philosopher who acknowledges the legitimacy of the transcendental revolution – any philosopher who sees himself as ‘post-critical’ rather than as a dogmatist – will maintain that it is naïve to think we are able to think something – even if it be a mathematical determination of the object – while abstracting from the fact that it is invariably we who are thinking that something.

Let us note – for we will have occasion to return to this point – that the transcendental revolution consisted not only in disqualifying the naïve realism of dogmatic metaphysics (for Berkeley’s subjective idealism had already accomplished this), but also and above all in redefining objectivity outside of the dogmatic context. In the Kantian framework, a statement’s conformity to the object can no longer be defined in terms of a representation’s ‘adequation’ or ‘resemblance’ to an object supposedly subsisting ‘in itself’, since this ‘in itself’ is inaccessible. The difference between an objective representation (such as ‘the sun heats the stone’) and a ‘merely subjective’ representation (such as ‘the room seems warm to me’) is therefore a function of the difference between two types of subjective representation: those that can be universalized, and are thus by right capable of being experienced by everyone, and hence ‘scientific’, and those that cannot be universalized, and hence cannot belong to scientific discourse. From this point on, intersubjectivity, the consensus of a community, supplants the adequation between the representations of a solitary subject and the thing itself as the veritable criterion of objectivity, and of scientific objectivity more particularly. Scientific truth is no longer what conforms to an in-itself supposedly indifferent to the way in which it is given to the subject, but rather what is susceptible of being given as shared by a scientific community.

Such considerations reveal the extent to which the central notion of modern philosophy since Kant seems to be that of correlation. By ‘correlation’ we mean the idea according to which we only ever have access to the correlation between thinking and being, and never to either term considered apart from the other. We will henceforth call correlationism any current of thought which maintains the unsurpassable character of the correlation so defined. Consequently, it becomes possible to say that every philosophy which disavows naïve realism has become a variant of correlationism.

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