Kant (CRP) – A experiência e o conhecimento a priori

Não restam dúvidas de que todo nosso conhecimento principia com a experiência; a não ser assim, que é que despertaria a nossa faculdade de conhecer e que é que a levaria a exercer-se além dos objetos que impressionam os nossos sentidos e que, por um lado, produzem por si mesmos representações e, por outro lado, põem em movimento a nossa atividade intelectual e a excitam a compará-las, uni-las ou separá-las e a organizar desse modo a matéria bruta das impressões sensíveis para com elas formar o conhecimento dos objetos? Deste modo, no tempo, nenhum conhecimento precede em nós a experiência, e todos principiam com ela.

Mas se todo o nosso conhecimento principia com a experiência, isso não significa que todo ele derive da experiência, porque pode bem suceder que mesmo o nosso conhecimento mediante a experiência seja um composto do que recebemos das impressões sensíveis e do que o nosso próprio poder de conhecer (simplesmente excitado pelas impressões sensíveis) produz de si mesmo, adição que não distinguimos até que a nossa atenção seja a isso conduzida por um longo exercício que nos tenha ensinado a separar uma coisa da outra. […]

Pela expressão «conhecimento a priori» entendemos, não aquele que é independente de uma determinada experiência, mas o que não depende de nenhuma experiência. A este conhecimento opõe-se o conhecimento empírico, ou seja aquele que é possível a posteriori, isto é, mediante a experiência. De entre os conhecimentos a priori, chamaremos puros aos que não apresentam qualquer influência empírica. Desta maneira, como exemplo, consideremos esta proposição: «toda a variação tem uma causa»; é uma proposição a priori, mas não é pura, porque o conceito de variação apenas da experiência pode provir. […]

Importa agora um critério que nos permita distinguir com segurança um conhecimento puro dum conhecimento empírico. A experiência ensina-nos claramente que uma coisa é isto ou aquilo, mas não nos pode esclarecer sobre o fato de ela não ser diferente. Em primeiro lugar, pois, se uma proposição apenas puder ser concebida como necessária, tratar-se-á de um juízo a priori; se, além de mais, não provier de qualquer outra proposição, destituída ela mesma do valor de juízo necessário, será absolutamente a priori. Em segundo lugar, a experiência nunca concede aos seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa, mas apenas suposta e comparativa (baseada na educação), o que, afinal, vem a significar apenas que, até este momento, não encontramos ainda nas nossas observações, por mais numerosas tenham sido, exceções a esta ou àquela regra. Portanto, se um determinado juízo for concebido como rigorosamente universal, de tal modo que se lhe não possa supor qualquer exceção, isso significará que tal juízo não proveio da experiência e é válido absolutamente a priori. A universalidade empírica não é, portanto, mais que uma arbitrária extensão de valor; duma proposição verdadeira para a maioria dos casos passa-se a uma outra que vale para todos, como esta, por exemplo: «todos os corpos são pesados.» Pelo contrário, quando um juízo possui essencialmente o caráter duma rigorosa universalidade, é que implica uma origem particular de conhecimento, isto é, uma faculdade de conhecimento a priori. A necessidade e a universalidade rigorosas são, pois, sinais evidentes de um conhecimento a priori e são inseparáveis. Mas, como na prática se torna, por vezes, mais fácil mostrar a limitação empírica dos juízos do que a sua contingência e como, do mesmo modo, é mais fácil mostrar a sua suposta absoluta universalidade do que a sua necessidade, é bom servirmo-nos separadamente destes dois critérios, pois cada um é por si próprio infalível.

E agora, que haja no conhecimento humano juízos necessários e rigorosamente universais, isto é, juízos puros a priori, eis o que se torna fácil demonstrar. Quereis um exemplo escolhido nas ciências? Basta, para isso, lançar os olhos sobre todas as proposições das matemáticas. Quereis um exemplo escolhido no conhecimento usual? Ei-lo: «toda variação tem uma causa.» Neste último exemplo, o conceito duma causa contém de modo tão evidente o da necessidade duma ligação necessária com um efeito, o duma rigorosa universalidade da regra, que seria completamente vão, como pretendeu David Hume derivá-lo da frequência da associação do fato atual com o fato precedente e do hábito, daí resultante (e, portanto, destituído de qualquer necessidade subjetiva), de ligar entre si representações. Aliás, não é necessário recorrer a tais exemplos para demonstrar a realidade de princípios puros a priori no nosso conhecimento; poder-se-ia também prová-lo a priori mostrando que são condições indispensáveis da possibilidade da experiência. Na verdade, donde promanaria a certeza se todas as regras segundo as quais se elabora fossem sempre empíricas e, por consequência, contingentes? Desta maneira não se poderia atribuir a regras deste gênero o valor dos primeiros princípios. […]

Não é só nos juízos, mas também nos conceitos, que se revela uma origem a priori. Separai sucessivamente do vosso conceito experimental de um corpo tudo quanto ele contém de empírico: a cor, a dureza ou a moleza, a própria impenetrabilidade, e fica sempre o espaço que tal corpo ocupava e que não podeis fazer desaparecer. Se, do mesmo modo do vosso conceito empírico dum objeto qualquer retirardes todas as propriedades que a experiência vos ensina, não podereis arrebatar, todavia, aquela que vos permite concebê-lo quer como substância, quer como inerente a uma substância. Compelidos pela necessidade com a qual este conceito se vos impõe, torna-se necessário reconhecer que a sua origem a priori reside na vossa faculdade de conhecer.

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