nossa tradução
O século XVIII consagrou o advento da medicina científica baseada na reaproximação entre os médicos, em demanda de padrões positivos de inteligibilidade, e os filósofos preocupados, segundo o novo espírito de alcançar um conhecimento positivo da natureza humana. Com relação ao homem, escreve Lamettrie novamente, “somente a experiência e a observação devem nos guiar aqui. Elas são encontradas inumeráveis na pompa dos médicos que foram filósofos, e não nos filósofos que não foram médicos. Estes viajaram, iluminaram o labirinto do homem; somente eles nos revelaram essas fontes ocultas sob envelopes que ocultam dos nossos olhos tantas maravilhas. Só eles, contemplando silenciosamente nossa alma, a surpreenderam mil vezes, em sua miséria e em sua grandeza, sem mais desprezá-la em um desses estados que admirá-la no outro. Novamente, esses são os únicos médicos que podem aqui falar. O que os outros nos diriam, especialmente os teólogos? …”
Tão livre de espírito quanto Lamettrie era, e tão apaixonado por paradoxos, suas proposições lançaram luz sobre uma situação factual característica de seu tempo: por um encontro bastante raro, médicos e filósofos, no século XVIII, se entenderam mutuamente para falar do homem, o objeto comum de suas preocupações. Tal oportunidade não nos é dada hoje em dia, [114] onde prevalecem entre as duas corporações a ignorância mútua e o desdém. Houveram no passado médicos filosófico, tal Lamettrie ele mesmo, ou Barthez, em aguardando Cabanis; houveram também filósofos médicos, como o “sábio” Locke, um dos principais inspiradores da reflexão filosófica no século XVIII. Um dos grandes nomes da medicina francesa no final do século XVIII, Bordeu, ele próprio filósofo o suficiente para ter sido escolhido como interlocutor válido por Diderot em sua entrevista intitulada O Sonho de d’Alembert, escreveu em 1768: Comumente se ignora que Locke foi médico, que foi amigo de Sydenham, que permaneceu por algum tempo em Montpellier, onde, sem dúvida, aproveitou as luzes desta escola e, especialmente, as de Barbeyrac (…). A medicina tem portanto direitos a todas as obras deste grande homem. Inimigo declarado das disputas da Escola, ele as considerava como assuntos de querelas inúteis (…) Locke argumenta à maneira dos médicos, principalmente em seu famoso tratado sobre o Entendimento humano. Por toda parte ele acompanha o progresso e o desenvolvimento dos efeitos produzidos pelos objetos das sensações no interior dos órgãos …” De fato, aquele que seus contemporâneos chamavam de “Doutor Locke” seguiu o curso completo de estudos médicos, publicou uma série de tratados sobre questões de anatomia e patologia, exercia a medicina em certos círculos muito aristocráticos; ele até prefaciou o trabalho de Sydenham: Methodus curandi febres.
O exemplo de Locke, que não está isolado, destaca, neste pensador do final do século XVII, a conjunção entre a empresa de uma história natural do espírito humano, substituída à antiga metafísica, e antropologia médica que também se esforça, na obra do grande Sydenham em particular, por alcançar um conhecimento positivo e não dogmático do ser humano são ou doente. Quer se queira ou não, o campo epistemológico da medicina aparece como um espaço privilegiado de projeção para os esquemas filosóficos. Nestes tempos pelo menos onde os pensadores se preocupam da condição humana e, na medida em que o fazem, o desafio de sua reflexão é o mesma que aquele da teoria e da prática médicas. Donde uma espécie de reciprocidade de influência, na medida que o orgulho intelectual cedendo ao bom senso, o filósofo se deixa informar pelo médico, que consente ele mesmo a se fazer instruir pelo especialista em pensamento. A bem dizer, esta boa entente não está mais disponível há um século: os médicos, com a boa consciência do positivismo triunfante, têm tendência a se fechar no estreito círculo de sua tecnicidade. Quanto aos metafísicos, perdidos no beco sem saída do espiritualismo universitário onde lhes conduziu Victor Cousin, há muito tempo largaram a presa do homem real pela sombra da caça aos fantasmas especulativos.
Assim não é propriamente no século XVIII, e é exatamente isto que permite o notável desenvolvimento da pesquisa antropológica, da qual emergiria a medicina moderna. Como indicamos no capítulo anterior, é a interpretação mecanicista do real que marca um novo limiar de inteligibilidade, graças ao esquema do homem-máquina. Mas não temos por conta disto o direito de considerar que há aí um corte a bem dizer, que se poderia datar, por exemplo, de 1628, data de publicação do trabalho de Harvey sobre a circulação sanguínea. De fato, a reflexão médica, embora agora tenha um novo instrumento de interpretação, [115] ainda se procede seguindo as principais linhas definidas desde a antiguidade; as mesmas teses, armadas com novos argumentos, nunca deixam de se confrontar no debate constantemente retomado, que dura ainda hoje. As duas escolas antigas de Cos e Cnidus podem servir de pontos de referência, cada uma delas tendo dado nascimento a uma tradição que se denota a influência, até os dias atuais, na explicação da saúde e da doença.
Original
Le XVIIIe siècle consacre l’avènement d’une médecine scientifique fondée sur le rapprochement entre les médecins, en quête de schémas positifs d’intelligibilité, et les philosophes soucieux selon l’esprit nouveau de parvenir à une connaissance positive de la nature humaine. S’agissant de l’homme, écrit encore Lamettrie, « l’expérience et l’observation doivent seules nous guider ici. Elles se trouvent sans nombre dans les fastes des médecins qui ont été philosophes, et non dans les philosophes qui n’ont pas été médecins. Ceux-ci ont parcouru, ont éclairé le labyrinthe de l’homme ; ils nous ont seuls dévoilé ces ressorts cachés sous des enveloppes qui dérobent à nos yeux tant de merveilles. Eux seuls, contemplant tranquillement notre âme, l’ont mille fois surprise et dans sa misère et dans sa grandeur, sans plus la mépriser dans l’un de ces états que l’admirer dans l’autre. Encore une fois, voilà les seuls physiciens qui aient droit de parler ici. Que nous diraient les autres, et surtout les théologiens ? … »
Si libre d’esprit qu’ait été Lamettrie, et si amateur de paradoxes, ses propos mettent en lumière une situation de fait caractéristique de son temps : par une rencontre assez rare, médecins et philosophes, au XVIIIe, siècle, se sont entendus mutuellement pour parler de l’homme, objet commun de leurs préoccupations. Pareille chance ne nous est pas accordée aujourd’hui, [114] où prévalent entre les deux corporations l’ignorance mutuelle et le dédain. Il y a eu jadis des médecins philosophes, tel Lamettrie lui-même, ou Barthez, en attendant Cabanis ; il y a eu aussi des philosophes médecins, tel le « sage » Locke, l’un des principaux inspirateurs de la réflexion philosophique au XVIIIe siècle. L’un des grands noms de la médecine française à la fin du XVIIIe siècle, Bordeu, lui-même assez philosophe pour avoir été choisi comme interlocuteur valable par Diderot dans son entretien intitulé Le Rêve de d’Alembert, écrivait en 1768 : « On ignore communément que Locke fut médecin, qu’il fut ami de Sydenham, qu’il resta quelque temps à Montpellier, où il profita sans doute des lumières de cette école, et surtout de celles de Barbeyrac (…) La médecine a donc des droits sur tous les ouvrages de ce grand homme. Ennemi déclaré des disputes de l’Ecole, il les regardait comme des sujets de querelles inutiles (…) Locke raisonne à la manière des médecins, principalement dans son fameux traité de l’Entendement humain. Partout il suit la marche et le développement des effets produits par les objets des sensations dans l’intérieur des organes … » De fait, celui que ses contemporains appelaient le « docteur Locke » a suivi le cours complet des études médicales, publié une série de traités sur des questions d’anatomie et de pathologie, exercé la médecine dans certains cercles fort aristocratiques ; il a même préfacé l’ouvrage de Sydenham : Methodus curandi febres.
L’exemple de Locke, qui n’est pas isolé, met en lumière, chez ce penseur de la fin du XVIIe siècle, la conjonction entre l’entreprise d’une histoire naturelle de l’esprit humain, substituée à l’ancienne métaphysique, et l’anthropologie médicale qui s’efforce elle aussi, dans l’oeuvre du grand Sydenham en particulier, de parvenir à une connaissance positive et non dogmatique de l’être humain sain ou malade. Qu’on le veuille ou non, le champ épistémologique de la médecine apparaît comme un espace de projection privilégié pour les schémas philosophiques. Aux époques du moins où les penseurs se préoccupent de la condition humaine, et dans la mesure où ils le font, l’enjeu de leur réflexion est le même que celui de la théorie et de la pratique médicales. D’où une sorte de réciprocité d’influence, pour autant que, l’orgueil intellectuel cédant au bon sens, le philosophe se laisse informer par le médecin, qui consent lui-même à se faire instruire par le spécialiste de la pensée. À vrai dire, cette bonne entente n’est plus guère de mise depuis un siècle : les médecins, avec la bonne conscience du positivisme triomphant, ont tendance à s’enfermer dans le cercle étroit de leur technicité. Quant aux métaphysiciens, égarés dans l’impasse du spiritualisme universitaire où les a conduits Victor Cousin, ils ont depuis longtemps lâché la proie de l’homme réel pour l’ombre de la chasse aux fantômes spéculatifs.
Il n’en est pas de même au XVIIIe siècle, et c’est justement ce qui permet le très remarquable essor de la recherche anthropologique, d’où devait sortir la médecine moderne. Comme nous l’avons indiqué au chapitre précédent, c’est l’interprétation mécaniste du réel qui marque un nouveau seuil d’intelligibilité, grâce au schéma de l’homme machine. Mais on n’a pas pour autant le droit de considérer qu’il y ait là une coupure à proprement parler, que l’on pourrait dater, par exemple, de 1628, date de publication de l’ouvrage de Harvey sur la circulation sanguine. En fait la réflexion médicale, bien que pourvue désormais d’un nouvel instrument d’interprétation, [115] se poursuit toujours suivant les grands axes définis depuis l’antiquité ; les mêmes thèses, armées d’arguments nouveaux, ne cessent de s’affronter dans le débat sans cesse repris, et qui dure encore aujourd’hui. Les deux écoles anciennes de Cos et de Cnide peuvent servir de points de repère, chacune d’elles ayant donné naissance à une tradition dont on relève l’influence, jusqu’à nos jours, dans l’explication de la santé et de la maladie .