Schopenhauer (MVR1:58-61) – A vida é sonho

Jair Barboza

A questão acerca da realidade do mundo exterior, tal qual a consideramos até agora, sempre se originou de um engano da razão consigo mesma, alçado à confusão geral, de modo que a questão só podia ser respondida mediante o esclarecimento de seu conteúdo. Após o exame da essência inteira do princípio de razão, da relação entre sujeito e objeto e da índole propriamente dita da intuição sensível, a questão tinha de ser suprimida, justamente porque não lhe restou mais significação, alguma. Só que ela possui ainda uma outra origem, por inteiro diferente da puramente especulativa até agora mencionada, uma origem propriamente empírica, embora sempre suscitada de um ponto de vista especulativo. Dessa perspectiva, possui um sentido muito mais compreensível que o anterior. Trata-se do seguinte. Temos sonhos. Não seria toda a vida um sonho? Ou, dito de maneira mais precisa: há um critério seguro para distinguir o sonho da realidade, os fantasmas dos objetos reais? A alegação de que o sonhado possui vivacidade e clareza menores que a intuição efetiva não merece ser levada em conta, pois ninguém ainda teve ambos presentes para poder efetuar a comparação, mas se pôde apenas comparar a LEMBRANÇA do sonho com a realidade presente. [Kant soluciona assim a questão: “O encadeamento das representações entre si conforme a lei de causalidade diferencia a vida do sonho”. Porém, também no sonho cada coisa particular se encadeia conforme o princípio de razão em todas as suas figuras, e tal encadeamento é quebrado meramente entre a vida e o sonho, e entre os sonhos isolados. A resposta de Kant, pois, só poderia soar assim: o sonho LONGO (a vida) tem encadeamento completo nele mesmo conforme o princípio de razão, mas não o possui com os sonhos BREVES, embora cada um destes, neles mesmos, possua o mesmo encadeamento. Entre estes e aquele, por conseguinte, rompe-se a ponte e ambos se diferenciam. — Não obstante, estabelecer segundo esse critério uma investigação sobre se algo aconteceu ou foi sonhado seria muito difícil e amiúde impossível; pois de modo algum estamos em condições de seguir membro a membro o encadeamento causal entre cada acontecimento vivenciado e o momento presente, e nem por isso podemos considerá-los como sonhados. Daí normalmente não utilizarmos na vida real aquele tipo de investigação para diferenciar o sonho da realidade. O único critério seguro para diferenciação entre os dois não é outro senão o inteiramente empírico do despertar, através do qual, com certeza, o encadeamento causal entre os acontecimentos sonhados e os da vida desperta são sensível e expressamente rompidos. Uma prova esplêndida disso fornece a observação que Hobbes faz no Leviatã, capítulo 2, a citar: que facilmente tomamos os sonhos por realidade quando, sem intencioná-lo, dormimos vestidos, e mais ainda quando, além disso, algum projeto ou negócio absorve todos os nossos pensamentos e nos ocupa tanto no sonho quanto no despertar. Nesses casos, o despertar é quase tão pouco notado quanto o adormecer. Sonho e realidade fluem conjuntamente, confundindo-se. Resta então, obviamente, apenas a aplicação do critério kantiano: mas se, depois, como muitas vezes é o caso, o encadeamento causal com o presente, ou a sua ausência, não pode absolutamente ser estabelecido, segue-se que para sempre fica indecidido se um evento ocorreu ou foi sonhado. Aqui, de fato, é trazido bastante próximo de nós o parentesco íntimo entre vida e sonho. Não queremos nos envergonhar em admiti-lo, após ele ter sido reconhecido e expresso por muitos espíritos magnânimos. Os Vedas e Puranas não sabem de comparação melhor para todo o conhecimento do mundo efetivo, que eles chamam manto de Maia, nem empregam outra mais frequentemente do que o sonho, Platão fala repetidas vezes que as pessoas vivem apenas em sonho, unicamente o filósofo se empenha em acordar. Píndaro diz (II. ç I 3 5): σκιάς οναρ ἀνθρωπος (umbrae somnium homo);1 e Sófocles:

Όρω γαρ ἡμας ουδεν οντας αλλο, πλην
Ειδολ’, ὁσοιπερ ζωμεν, η κουφην σκιαν.
(Ajax Ι 25)

(Nos enim, quicunque vivimus, nihil aliud esse comperio, quam simulacra et levem umbram.)2

Ao lado dos quais Shakespeare se coloca da maneira mais apreciável:

We are such stuff
As dreams are made of, and our little life
Is rounded with a sleep.3 (Temp. A.4, Sc. I)

Por fim, Calderon estava tão profundamente imbuído dessa visão, que procurou expressá-la num, por assim dizer, drama metafísico, intitulado A vida é sonho.

Original

  1. “O homem é o sonho de uma sombra.” (N. T.)[]
  2. “Vejo que nós, viventes, nada somos senão figuras ilusórias, imagens de sombras fugidias.” (N. T.)[]
  3. “Somos feitos do mesmo estofo que os sonhos, e a nossa breve vida está rodeada de um sono.” (N. T.)[]

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