Fichte – Eu ≠ não-Eu (Markus Gabriel)

O segundo princípio da doutrina-da-ciência enuncia em uma forma algo simplificada: “Eu ≠ não-Eu”. Por trás desse princípio se esconde exatamente a ideia da objetividade absoluta. O que não é o Eu, justamente, não é – segundo Fichte – Eu. Tudo que não é alguém que sabe algo, por exemplo pedras, prados, neutrinos, galáxias e assim por diante, pode ser resumido sob o conceito de não-Eu. Coisas ou fatos que só existem quando alguém sabe sobre eles não pertencem a essa categoria. Fichte também chama essa categoria de “natureza”, o que lhe trouxe em seu tempo objeções de, entre outros, Goethe, que pensava não se poder excluir o Eu da natureza. Mas Fichte ganhou aqui historicamente, pois ele trouxe ao ponto, com o segundo princípio, a ideia da natureza como não-Eu, a ideia da objetividade absoluta. Ao fazê-lo, porém, ele não era da opinião de que haveria simplesmente a natureza, mas sim pensava que o conceito da natureza, como a totalidade de tudo que é da espécie do não-Eu, seria um produto da abstração do Eu.

De fato, a intenção de Fichte era, na verdade, salvar desse modo, por assim dizer, o Eu da natureza. Todavia, desse modo, ele também purificou, inversamente, inteiramente a natureza do Eu, de modo que, aparentemente, não era mais compreensível como o Eu poderia vir alguma vez a pertencer à natureza.

Esse dilema nos ocupa até hoje na medida em que entendemos por “natureza”, entre outras coisas, o que se tentou investigar sob o sinal da absoluta objetividade. E isso não vale, então, per definitionem, para o nosso ponto de vista subjetivo. O Eu se opôs, assim, de maneira radical à natureza, de modo que seria de se esperar, no próximo ato, a tentativa de removê-lo inteiramente do retrato. É exatamente isso que o neurocentrismo tem em mente, uma vez que ele quer desfazer a aparência que se tem da existência do Eu ao tentar traduzir tudo que tem a forma do Eu na linguagem da neuroquímica ou da psicologia evolutiva.

Mas Fichte teria se revoltado vigorosamente contra isso – e de fato com boas razões. Isso porque a concepção de objetividade absoluta ignora que ela traz a natureza a um conceito unitário. Realizemos um simples percurso de pensamento. O que prótons, bósons, fótons e nêutrons têm verdadeiramente em comum? Ora, não apenas que todos eles acabem com “ons” (caso contrário, também poderíamos adicionar maçons ao modelo de partículas). Isso porque, ao lado deles, pertencem à natureza também moléculas e galáxias, o Big Bang, a força gravitacional, bactérias, ursos d’água1, supernovas e o espaço-tempo. Então, mais uma vez: O que, afinal, esses objetos, leis ou fatos têm verdadeiramente em comum, de modo que podemos em geral reconhecer [erkennen] que eles pertencem ao mesmo âmbito?

E aqui responde Fichte: eles têm em comum que nós os descrevemos do ponto de vista da objetividade absoluta. Isso significa, porém, que todos esses objetos, leis e fatos estão conectados no quadro de uma teoria. Rigorosamente falando, não há até hoje uma tal teoria, não há uma teoria unitária da natureza que fosse reconhecida como uma ciência natural particular. Nem mesmo a física consegue isso. Mas de onde tiramos, então, a certeza de que há um âmbito unitário da natureza, que nós investigamos no modo da objetividade absoluta?

A chave para a resposta dessa pergunta reside em que o ponto de vista da objetividade absoluta não pode, ele mesmo, ser investigado do ponto de vista da objetividade absoluta. A ideia da objetividade absoluta é um produto da abstração, que resulta de que abstraímos de nós mesmos em uma investigação. Não desaparecemos, no entanto, desse modo, mas sim nos mantemos fora do retrato que fazemos de uma situação objetiva [Sachlage].

Em completa sintonia com Fichte, Nagel e Searle reformularam esse pensamento em tempos mais recentes. Isso porque ambos apontam para o fato de que o nosso ideal de objetividade é formulado de um ponto de vista que não pode, ele mesmo, ser objetivo, porque ele é e permanece o nosso ponto de vista, ou seja, o Eu se distingue do não-Eu, ele formula a teoria a respeito do que conta como Eu e do que conta como não-Eu. Essas teorias não são primeiramente forjadas no laboratório, mas sim em relações sociais, o que Nagel e Searle não colocam no centro, mas Fichte já havia reconhecido.

Disso não se segue que não haja objetividade absoluta, que neutrinos, por exemplo, sejam “socialmente construídos”. Há realmente neutrinos, e foi um capítulo empolgante da história da ciência do século passado prevê-los teoricamente e por fim descobri-los. O que se segue daí, todavia, é que é impossível que haja apenas objetividade absoluta. Uma visão de mundo completamente abrangente na qual o Eu não ocorra é radicalmente incompleta. Em primeiro lugar, visões de mundo completamente abrangentes simplesmente falham – o que foi o tema de Por que o mundo não existe. Mas você não precisa compreender o que isso significa agora mais exatamente. Aquilo de que precisamos aqui é, simplesmente, a compreensão completamente simples de que as nossas suposições sobre o que pertence como um todo à natureza são feitas de um ponto de vista. Esse ponto de vista examina as coisas e fatos no modo da objetividade absoluta, modo que praticamos por meio de métodos científicos modernos. Mas esses métodos e, assim, o quadro da objetividade absoluta, não se deixam eles mesmos ser examinados ao se aplicar esses métodos a si mesmos. Não há ciência natural da ciência natural, motivo pelo qual há até o momento, de fato, disciplinas neurais absurdas – a neurogermanística, a neurossociologia e a neuroteologia, mas não há ainda nenhuma neuroneurociência, que se poderia superar de novo com uma neuroneuroneurociência. (MGCérebro)

  1. Invertebrados microscópicos, chamados de ursos d’água por terem quatro patas e garras e pela forma com que se locomovem [N.T.].[]

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