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contemplação

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Desde o primeiro momento em que me interessei pelo problema da Ação — a mais antiga preocupação da teoria política —, o que me perturbou foi que o próprio termo que adotei para minhas reflexões sobre o assunto, a saber, vita activa, havia sido cunhado por homens dedicados a um modo de vida contemplativo e que olhavam deste ponto de vista para todos os modos de vida.

Visto a partir daí, o modo ativo de vida é “laborioso”, o modo contemplativo é pura quietude; o modo de vida ativo dá-se em público, o contemplativo no “deserto”; o modo ativo é devotado às “necessidades do próximo”, o modo contemplativo à “visão de Deus”. (Duae sunt vitae, activa et contemplativa. Activa est in labore, contemplativa in requie. Activa in publico, contemplativa in deserto. Activa in necessitate proximi, contemplativa in visioni Dei). Citei um autor medieval [Hugo de São-Vítor] do século XII quase aleatoriamente porque a ideia pela qual a contemplação constitui o mais alto estado do espírito é tão antiga quanto a filosofia ocidental. A atividade do pensamento — segundo Platão, o diálogo sem som que cada um mantém consigo mesmo — serve apenas para abrir os olhos do espírito; e mesmo o nous aristotélico é um órgão para ver e contemplar a verdade. Em outras palavras, o pensamento visa à contemplação e nela termina, e a própria contemplação não é uma atividade, mas uma passividade; é o ponto em que as atividades espirituais entram em repouso. Segundo as tradições da Era Cristã, quando a filosofia tornou-se serva da teologia, o pensamento passou a ser meditação e a meditação passou novamente a terminar na contemplação, uma espécie de estado abençoado da alma em que o espírito não mais se esforçava para conhecer a verdade, mas para antecipar [8] um estado futuro, recebendo-o temporariamente na intuição. (Descartes  , de modo característico, ainda influenciado por esta tradição, chamou o tratado no qual se dispôs a demonstrar a existência de Deus de Méditations). Com o surgimento da Era Moderna, o pensamento tornou-se principalmente um servo da ciência, do conhecimento organizado; e ainda que tenha ganho muito em atividade, segundo a convicção crucial da modernidade pela qual só posso conhecer o que eu mesmo produzo, foi a matemática, a ciência não-empírica por excelência, em que o espírito parece lidar apenas consigo mesmo, que passou a ser a ciência das ciências, fornecendo a chave para as leis da natureza e do universo que se encontram ocultas pelas aparências. Se era um axioma para Platão que o olho invisível da alma era o órgão adequado para contemplar a verdade invisível com a certeza do conhecimento, tornou-se axiomático para Descartes — durante a famosa noite de sua “revelação” — que havia “um acordo fundamental entre as leis da natureza [que estão ocultas pelas aparências e por percepções sensoriais enganosas] e as leis da matemática”; ou seja, entre as leis do pensamento discursivo em seu nível mais elevado e abstrato e as leis do que quer que se encontre na natureza por trás da mera “semblância”. E ele acreditava realmente que com este tipo de pensamento — que Hobbes   denominava “cálculo de consequências” — poderia produzir conhecimento seguro sobre a existência de Deus, da natureza da alma e de outros assuntos do gênero.

O que me interessava no estudo sobre a Vita activa era que a noção de completa quietude da Vita contemplativa era tão avassaladora que, em comparação com ela, todas as diferenças entre as diversas atividades da Vita activa desapareciam. Frente a essa quietude, já não era importante a diferença entre laborar e cultivar o solo, trabalhar e produzir objetos de uso, ou interagir com outros homens em certas empreitadas. Mesmo Marx  , em cuja obra e em cujo pensamento a questão da ação teve um papel tão crucial, “utiliza a expressão ‘praxis’ simplesmente no sentido ‘daquilo que o homem faz’ em oposição ‘àquilo que o homem pensa’.” Eu estava todavia ciente de que era possível olhar para esse assunto de um ponto de vista completamente diferente; e para deixar registrada a minha dúvida, encerrei esse estudo da vida ativa com uma curiosa sentença que Cícero atribuiu a Catão. Este costumava dizer que “nunca um homem está mais ativo do que quando nada faz, nunca está menos só do que quando a sós consigo mesmo” (Numquam se plus agere quam nihil cum ageret, numquam minus solum esse quam cum solus esset). Supondo que Catão esteja certo, as questões que se apresentam são óbvias: o que estamos “fazendo” quando nada fazemos a não ser pensar? Onde estamos quando, sempre rodeados por outros homens, não estamos com ninguém, mas apenas em nossa própria companhia? [ArendtVE:7-9]


VITA CONTEMPLATIVA