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sentimento

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Assim, o conceito de consciência, ao fazer a sua entrada na filosofia ocidental, desdobra-se misteriosamente, designando, ao mesmo tempo, como vinculados um ao outro, e como fundados um sobre o outro, o visível e o invisível, o pensamento e a vida. Mas a parecença [semblance] originária à qual o próprio ver reclama seu ser prévio, depende também das prescrições de uma fenomenologia material; ela não é um conceito, mas se exibe em si mesma na efetividade de sua matéria fenomenológica. Por acaso, Descartes   concebeu verdadeiramente a afetividade como essa matéria, como a substância fenomenológica da autoafecção pela qual o ver se afeta a si mesmo e, desse modo, faz a prova de si [s’éprouve] ao ver, tal como essa parecença [semblance] originária na qual “me parece que eu vejo”?

Aqui advém o desvio historial em virtude do qual a filosofia moderna perde, desde o princípio, a essência da vida, e não pode continuar-se mais senão como uma filosofia e uma história do “pensamento”, no exato sentido que esse conceito reveste em nossos dias. Por um lado, Descartes reconhecia a afetividade do pensamento, ou melhor, e de maneira já restrita, o fato de que o dito pensamento seja capaz de revestir uma forma propriamente afetiva, em alguns de seus modos, como as sensações e os sentimentos – aliás, mal distinguidos – e, em todo caso, nas paixões da alma. O fato de receberem este nome – o de “paixões da alma” – implica, em primeiro lugar, que pertencem à alma, ao pensamento. Na medida em que Descartes se compromete, a esse respeito, com uma análise que, em muitos aspectos, pode considerar-se fenomenológica, ainda que ela venha a efetuar o seu andamento com a ajuda de conceitos cuja legitimidade teremos ocasião de nos interrogar, encontra-se, aqui, algo mais do que uma simples constatação. A propósito destes sentimentos, é dito, nos Princípios [86] (I), que são, ao mesmo tempo, “claros” e “confusos” e, no § 68, que não nos equivocaremos a seu respeito desde que distingamos neles “o que há de claro do que há de obscuro”. O fato de os sentimentos serem claros e, por conseguinte, podermos ter deles “um conhecimento claro e distinto” (§ 66), significa que são matérias fenomenológicas, modos do pensamento e, nessa pertença ao cogito, tão “certos” como suas outras determinações: a alma não pode senti-los de outro modo senão como são, e isso porquanto seu ser consiste na autoafeccção. O fato de esses sentimentos – essa sensação de calor, essa alegria – serem “obscuros” ou ainda “confusos” não significa outra coisa: Descartes visa aqui à especificidade fenomenológica da própria fenomenalidade dessas paixões, o fato de que tal fenomenalidade não seja a transparência de uma luz inteligível, mas de modo preciso, a afetividade, essa matéria fenomenológica irredutível em sua tonalidade própria. Na verdade, Descartes diz que os sentimentos são confusos em outro sentido, e só a esse respeito convém distinguir o que há de claro do que há de obscuro. A análise só é válida, então, para as sensações que são “claras”, enquanto matérias fenomenológicas, e são “confusas”, por sua vez, não mais em si mesmas, em sua afetividade, mas no juízo que se vincula naturalmente a elas e pelo qual são referidas às coisas exteriores e, primeiramente, ao corpo próprio – juízo em virtude do qual dão mostras de pertencer a essas coisas ou a esse corpo, como se fossem elas ou ele os cálidos ou dolorosos: “Não chegamos a considerar estes sentimentos como ideias que estavam unicamente em nossa alma; mas, acreditávamos que estavam em nossas mãos, em nossos pés e em outras partes de nosso corpo” (§ 67). E o § 68 acrescenta: Conhecemos clara e distintamente a dor, a cor e as outras sensações, quando as conhecemos simplesmente como pensamentos; mas... quando queremos julgar a cor, a dor etc., como coisas que subsistem fora de nosso pensamento, não concebemos, de forma alguma, que coisa seja esta cor, esta dor etc. [1]

Nesses magníficos textos, não se encontra somente reafirmada, com claridade, a diferença ôntico-ontológica que decididamente proíbe toda e qualquer atribuição ao ente de determinações do aparecer. Precisamente como a afetividade é explicitamente referida ao aparecer e apreendida como sendo suscetível de situar-se tão-somente nele, pode sua inerência à alma [87] significar outra coisa que não a sua intervenção ativa no processo em que se constrói a fenomenalidade? Isso que significa a essência, essência da alma, essência do pensamento: a possibilidade extrema e última do poder que produz a fenomenalidade e a conduz à efetividade. Ora, o olhar cartesiano se esquiva diante da intuição cegante da afetividade como aquilo que constitui a primeira vinda a si do aparecer, a autoafecção originária na qual o aparecer se aparece a si mesmo e surge na aparência de sua própria fenomenalidade: a afetividade não é a essência do pensamento, a sua substância – a saber, a substancialidade fenomenológica da fenomenalidade pura –; ela lhe advém não em virtude do que é e idêntica ao poder pelo qual é engendrada, mas como um acidente, como aquilo que provém de outra coisa e, ao constrangê-la a partir do exterior, tem como único efeito pôr em causa seu poder de revelação e a transparência de sua própria fenomenalidade. No entanto, a fenomenalidade, de clara, isto é, de esclarecedora que era, ao ser separada repentinamente de sua capacidade primitiva de exaltar o aparecer e de trazê-lo à aparição, perde-se com ele e torna-se “obscura”. A “obscuridade” não é mais – nunca é em Descartes – o índice fenomenológico que remete, para aquém da ek-stasis, ao lugar mais originário onde surge o aparecer em sua imediatidade; mas, ela marca antes seu declínio, sua alteração por um poder alheio; não é mais o próprio pensamento, o pensamento “puro”, mas sua “confusão”. Assim, recusa-se, uma vez mais, o princípio da redução, a saber, a instauração de uma clivagem decisiva entre o aparecer e o ente que, após ter sido posto entre parêntesis, quer dizer, definitivamente separado da essência da fenomenalidade e de suas condições, volta-se a se apresentar como uma destas condições, o que nos faz ver, então, um elemento fenomenológico puro – o sentimento – e que se dá não mais tal como é, já não é um sentimento, nem muito menos como pertencente ao aparecer, mas como o efeito, aliás misterioso, do ente nele no aparecer. [MHPsique:85-87]


VIDE: Gefühl, aisthema

LÉXICO: sentimento; sentimentalismo; sentimentalidade

Observações

[1FA, III, p. 136; AT, IX, II, p. 56.