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praxiologia

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

«Se se removesse de toda a ‘poesia’ a melodia, o ritmo e a métrica, o que restaria seria alguma outra coisa para além do próprio sentido das situações que aqui estão em causa?» [Górgias, 502c5-7]. Para se aceder aos sentidos dos discursos (λόγοι [logoi]), é necessário fazer que sejam removidas todas as formas de constituição de regozijo e de prazer (χάρις τε καὶ ἡδονή [charis te kai hedone]) as quais, enquanto formas de afetação patológica, impedem a verdadeira interpretação e tematização do sentido da situação que está a ser reproduzida, por forma que possamos fitar apenas [105] o sentido a nu [1]. A resolução do problema consiste, mesmo que só a título de intenção, na anulação da forma de educação [2] que se fundamenta na estrutura horizontal, cujos limites são os pathos (πάθη) prazer-sofrimento (ἡδονή-λύπη): no pôr fora de jogo todas as formas de bajulação (κολακεία [kolakeia]), como a melodia (μέλος [melos]), o ritmo (ῥυθμός [rythmos]) e a métrica (μέτρος [metros]), que nos impedem de aceder aos sentidos (λόγοι) das situações (πράξεις [praxeis]) que estão a ser apresentadas. A dificuldade consiste em conseguir «entender» a «coisa» que está a ser tematizada para além da propensão natural que temos em acolher e perseguir o que nos bajula e dá prazer, e evitar ou fugir daquilo que nos parece trazer sofrimento. Ver para além desta propensão natural pode significar perseguir o sofrimento e evitar o prazer, se a avaliação das situações em que nos encontramos revelar que o prazer proposto é prejudicial ou nocivo e que o sofrimento por que passamos pode ser vantajoso [3].

Só neste esforço se pode levantar a pergunta sobre a «lógica» das situações (πράξεις) humanas. Mas como é possível constituir uma perspectiva que tenha a liberdade de poder dissociar o horizonte patológico, que investe os fenômenos de prazer e de sofrimento, de um caráter absoluto do horizonte em que se pode perguntar pelas possibilidades que uma e outra estrutura patológica constituem ou retiram. Isto é perguntar pela excelência (ἀρετή [arete]) e pela perversão (κακία [kakia]) do prazer (ἡδονή [hedone]) e do sofrimento (λύπη [lype]). Só esta dissociação nos poderá conduzir à determinação do sentido de cada afeto (πάθος), isto é, à análise das situações (πράξεις), mas já sem uma distorção patológica. Só desse modo se interroga o horizonte fenomênico que nos permite saber o que se passa na verdade [República, 493b7], para que de fato se possa agir.

Todas estas dificuldades resultam do nosso enraizamento originário mas inautêntico numa situação universal de compreensão. Quer dizer, nós temos uma tendência natural para petrificar tudo aquilo que se faz sentir e que nos afeta, sem o esforço de procurar [106] dilucidar a perspectiva a partir da qual damos sentido a toda e qualquer situação. Na Carta VII   [em 341c2], Platão refere que se pode pensar estar de posse da verdadeira compreensão do sentido daquelas coisas com as quais ele se preocupa, e, no entanto, nada se entender acerca da coisa que de cada vez está a ser tematizada (πράγμα [pragma]), do tema que de cada vez é posto em foco analítico [Carta VII, 341c4]. A causa responsável por isto radica no fato de aquilo que se «leva a sério» [Carta VII, 341c2] não poder ser trazido à palavra como outros «temas susceptíveis de aprendizagem» [Carta VII, 341c6]. Um verdadeiro domínio do sentido daquilo que é o tema da filosofia só poderá eventualmente surgir «depois de uma longa comunhão [4] e «convivência» [Carta VII, 341c7] com «a coisa ela mesma» [Ibid]. Ao dar-se «de repente» [Ibid], na «alma humana», uma primeira indicação desse sentido, isso é o bastante para ela se alimentar a si própria [Carta VII, 341c] e produzir então uma verdadeira apropriação da coisa da filosofia. A forma como nós podemos ter acesso à própria coisa (αυτό τὸ πράγμα [auto to pragma]) resulta, portanto, do esforço de apropriação do seu sentido para além da mera passividade patológica com que nos dispõe [5]. [CaeiroArete:105-107]


LÉXICO: praxiologia

Observações

[1Os oradores têm em vista só o que lhes importa, e fazem pouco do bem coletivo, isto é, tanto Lhes faz se os cidadãos se tornam melhores ou piores (Gór., 502e8).

[2Não se trata sem mais de uma anulação da patologia: «the lives of the producers will be lives of balance and moderation», embora «they pursue the goals of appetite, they will pursue them hoistically rather than factiosly» (G. Klosko, «Demotike Arete in the Republic», History of Political Thought, vol. III/3, Winter 1982, pp. 363-381,p. 379).

[3«Ver para além da propensão natural» não significa necessariamente inverter a ordem das movimentações, como se se passasse a perseguir o sofrimento e a evitar o prazer. Esta inversão pode dar-se só no horizonte patológico e não resultar de uma verdadeira abertura para o sentido das situações em que nos encontramos.

[4Fritz Jürss, «Platon und die Schriftlichkeit», Phil., 135, 1991, pp. 167-176, cf. p. 171: «philosophisches Wissen ist ständig unterwegs». Thomas Alexander Szlezák, «Das Wissen des Philosophen in Platons Phaidros», WS, 1994, pp. 259-271. Ter em vista a possibilidade de um verdadeiro sentido das proposições não depende de uma inspiração divina mas de uma techne. O filósofo é perito de logoi. Cf., para um comentário desta passagem, p. 263, e Michael Erler, «Natur und Wissensvermittlung», RM, 132, 1989, pp. 280-293.

[5Cf. Wieland: «Denn was die Sache der Philosophie überhaupt sei, ist eine nichttriviale Frage, deren Erörterung bereits in den Innenbereich der Philsophie gehort. [...] Geht es um Texte, so stellt der Gebrauchstext der alltäglichen Lebenspraxis den einen Grenzfall dar. [...] In diesem Bereich besteht daher immer auch die prinzipielle Möglichkeit eines testfreien Zugangs zu den Sachen von denen, der Text handelt.» E um pouco mais adiante, os textos têm que ser interpretados a partir da sua própria verdade, «aus ihnen Wahrheit zu gewinnen» (p. 9). Fritz Jürss, «Platon und die Schriftlichkeit», Phil., 135, 1991, pp. 167-176: «Dieses Hervorholen des Wissens wird ais sukzessive Wiedererinnerung, ais Anamnesis umschrieben» (p. 168). Cf. também Emest Heitsch, «Platons Dialoge und Platons Leser», RM, 131, 1988, pp. 216-238. Um esclarecimento do conteúdo dos enunciados filosóficos não é outra coisa senão «eine Leistung des Subjekts und allein von dessen Disposition abhängt» (p. 233). «Erklärung wird vom Subjekt geleistet, sofern es dazu disponiert ist» (p. 232).