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fogo

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  
Pierre Gordon  

Heráclito   não teme escrever: «O mundo não foi feito nem por um deus nem por um homem; sempre foi, é, e sempre será, o fogo sempre vivo, que se acende regularmente e se apaga regularmente».

O sentido desta declaração não é duvidoso: Heráclito tem em vista o fogo transcendental, o fogo de ouro, o fogo-luz, dito de outro modo a energia radiante, substância dinâmica das coisas. Não vê, no universo fenomenal, senão a realidade eterna subjacente, aquela que não flui sem fim, e que não tem necessidade de explicação: ela se justifica por sua única existência, posto que ela é unidade e identidade integral. Sem indicar por qual caminho o universo fenomenal se liga a este fogo transcendente, que também é Inteligência ou Logos, o filósofo de Éfeso admite, por outro lado, segundo uma distorção de pensamento, que os cosmos físicos, manifestações do fogo, se formam e se extinguem sem fim. Temos então visões de fonte teocrática, deformadas ao longo do tempo. Quando se conhece o parentesco sacerdotal de Heráclito, não se fica surpreso de vê-lo escolher assim o fogo — o antigo fogo sacrossanto — como substância eterna das coisas. [Cosmogonias Filosóficas]


Eudoro de Sousa  

96. Primeiro, o fragmento 30 de Heráclito: «este kósmos que é o mesmo para todos nem deus nem homem algum o fez; sempre foi, é e será um Fogo continuamente vivo, que se alumia por medida e por medida se apaga». No Horizonte e Complementaridade (§ 78) tentei sair de uma dificuldade por porta excessivamente estreita. A dificuldade é esta: «como se há-de entender que ‘continuamente vivo’ seja um Fogo sujeito à alternância do apagar-se e do aluminar-se? Não morrerá ele quando se apaga? E não reviverá quando se alumia? Manifestamente o aei (‘continuamente’) não condiz com a descontinuidade marcada pelos momentos de extinção.» Não tentarei sair pela mesma porta por onde, então, pretendi sair. Procuremos outra. Antes de mais, declaremos com toda a ênfase que aquele kósmos não é certamente o único Mundo da nossa objetividade; nem teria sentido falar de objetividade e trans-objetividade a propósito de qualquer fragmento dos pré-socráticos  . Esse kósmos é o «arranjo» de todos os entes intramundanos, que Heráclito vê e experimenta em sua Grande Vigília de filósofo, a Vigília que não é o sono a que equipara a vigília do homem comum (frg. 1). Agora, conferindo o fragmento 30 com o fragmento 31, que aponta para as tropai («viragens») do Fogo, observa-se que não se pode entender que o fragmento 30 seja expessão de uma identidade: que o Mundo (kósmos) é simplesmente Fogo, que Heráclito afirme a identidade dos dois, que os dois sejam uma e a mesma coisa. «Viragens», no fragmento 31, é uma maneira de dizer que Fogo e Mundo se opõem; e se o Efésio parece dizer que o Fogo e Mundo são o mesmo, o que na verdade diz, como tantas vezes o diz, é que os opostos coincidem.

97. Por conseguinte, o Fogo «vira» Mundo. Mas quando? Quando se apaga ou quando se alumia? Tudo nos leva a crer que verdadeiro é só o primeiro membro da alternativa; Fogo, apagando-se, «vira» Mundo. Também não se pode aceitar ao pé da letra aquele «nem deus algum o fez...». Creio que a ênfase, aqui, recai sobre o fez; nenhum deus fez o Mundo. O kósmos não é coisa que alguém faça, nem que esse alguém seja um deus. Mundo, qualquer mundo, surge, vivendo, da «viragem» do Fogo; é Fogo extinto [185], é corpo vivo de um deus «morto». Para uma confirmação indireta, temos, pelo menos, dois outros fragmentos, o 62 e o 67. Fragmento 62: «Imortais mortais, mortais imortais; vivendo a morte daqueles, daqueles a vida morrendo.» O fragmento 67 talvez mostre a relação que Heráclito propôs entre Deus e deuses: «Deus... muda... como Fogo misturado a essências perfumadas: denomina-se segundo o aroma de cada uma.» O fragmento que nos resta neste contexto é o mais discutido — o fragmento 26. A interpretação mais verosímil, ao que me parece, é a que expus em Horizonte e Complementaridade (§ 79). A meu modo de ver, este descreveria o processo antropogônico como inversão do processo cosmogônico, na medida em que deixa prever o termo final, como Fogo-Alma, nesta proporção: (morto) está para o dormente como o dormente está para o vigilante, como o vigilante está para X. Este X é a vida do homem que regressa ao estado primordial de puro Fogo. Que lemos, portanto, nestes fragmentos de Heráclito? Parece-me inevitável esta conclusão: Cosmofania é Teocriptia (Fogo que «morre», extinguindo-se, «vira» Mundo) e Cosmocriptia é Teofania (isto lê-se apenas no fragmento 26, quanto ao homem, se está longe de provado que a ekpyrosis dos Estoicos não provenha de Heráclito). E, então, poderíamos dizer: o «oculto reinar» de um deus é morte dele, feita vida de um mundo; a morte de um deus é vida do mundo que ele «acenou». Não é isto uma interpretação forçada até o inverosímil, porque em Heráclito «morte» é outra maneira de ele se referir à tropé («viragem») pela qual qualquer «posto» se volve em seu «oposto». [EudoroMito:185-186]



LÉXICO: fogo