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fetichismo

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

O que Marx   denomina de “caráter fetichista” da mercadoria consiste neste desdobramento do produto do trabalho, mediante o qual ele volta ao homem ora uma face, ora outra, sem que nunca seja possível ver a ambas no mesmo instante. Isso apresenta mais do que uma simples analogia terminológica com os fetiches que são objeto da perversão. A sobreposição do valor de troca sobre o valor de uso corresponde, no fetichismo, a sobreposição de um valor simbólico particular sobre o uso normal do objeto. E assim como o fetichista nunca consegue possuir integralmente o seu fetiche, por ser o signo de duas realidades contraditórias, assim o possuidor da mercadoria nunca poderá gozar dela contemporaneamente enquanto objeto de uso e enquanto valor; ele poderá manipular de todas as maneiras possíveis o corpo material em que ela se manifesta, poderá até alterá-lo materialmente chegando a destruí-lo, mas, nesse desaparecimento, a mercadoria voltará a afirmar mais uma vez a sua inapreensibilidade.

A fetichização do objeto efetivada pela mercadoria evidencia-se nas Exposições Universais, que Benjamin define como “lugares de peregrinação ao fetiche-mercadoria”. Marx encontrava-se em Londres quando, em 1851, foi inaugurada, com enorme estardalhaço, a primeira Exposição Universal no Hyde Park, e é provável que a lembrança da impressão deixada naquela ocasião tenha contribuído para suas considerações sobre o caráter de fetiche da mercadoria. A “fantasmagoria” de que fala, quando se refere à mercadoria, reaparece nas intenções dos organizadores, que optaram, entre os diferentes projetos apresentados, por aquele de Paxton, o de um imenso palácio construído inteiramente de cristal. O Guia da Exposição de Paris de 1867 reconfirma a supremacia desse [68] caráter fantasmagórico. “Il faut au publique” — lê-se nele — “une conception grandiose qui frappe son imagination; il faut que son esprit s’arrete étonné devant les merveilles de l’industrie. Il veut contempler un coup d’oeil féerique et non pas des produits similaires et uniformement groupés”.[“O público necessita de uma concepção grandiosa que arrebate sua imaginação: é preciso que seu espírito pare estupefato frente às maravilhas da indústria. Ele quer contemplar um golpe de vista feérico, e não produtos similares e uniformemente agrupados.”] Os cartões-postais da época intensificam ainda mais o efeito, envolvendo os edifícios da Exposição em uma auréola luminosa.

A transfiguração da mercadoria em objet féerique é o sinal de que o valor de troca já está começando a eclipsar, na mercadoria, o valor de uso. Nas galerias e nos pavilhões do seu místico palácio de cristal, em que desde o início também se dá espaço às obras de arte, a mercadoria fica exposta para ser gozada unicamente através do olhar no coup d’oeil féerique.

Com a Exposição Universal, celebra-se, portanto, pela primeira vez, o mistério que hoje se tornou familiar a qualquer um que tenha entrado em supermercado ou tenha ficado exposto à manipulação da réclame: a epifania do inapreensível. [AgambenE:69]

LÉXICO: fetichismo