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mito

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

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O mito é narrativa sui generis; admitamos a banalidade, com o autor de um livro recentíssimo. Sempre há, como sempre houve, livro recente que se escreve acerca do que, em todos os livros que já foram recentes, jamais se escreveu de modo a prender-nos a atenção sobre isto: que, afinal, nada há a dizer de tão recente quanto o seria colocar, de uma vez, o mito em seu lugar próprio. [33] Um mito, como narração, é espécie do gênero da literatura oral ou escrita, ou oral e escrita. Tudo vai bem enquanto não se procure o específico daquele genérico. Mas tão bem não parece que as coisas vão quando um autor pretende ultrapassar os limites da teoria literária, ao empenhar-se em desvelar o «significado [do mito] e [suas] funções nas diversas culturas». O mal não está em que queira ultrapassá-lo, mas em que, querendo-o, efetivamente o não ultrapasse, e que, não o ultrapassando, ainda assim chegue a influir na mente dos incautos a convicção de que o ultrapassou, por de mais se demorar na discussão pseudocientífica das opiniões discordantes e contraditórias. De facto, uma teoria do mito só abre ou pode abrir seu caminho deixando para trás a ideia de que ele seja mais um de entre todos os traços em que se configurou uma cultura, deixando encoberto o pressuposto de que uma cultura ou uma época da Cultura contém isto e aquilo e, ao lado disto e daquilo, a sua mitologia. É claro que negar o fundamento daquela ideia e a validez deste pressuposto tem suas raízes em outra ideia e arranca de outro pressuposto. Não se pode dar prova do que, por improvável, não está sujeito a prova; mas porque nos movemos, aqui, no domínio do improvável, que por todos os lados trespassa o horizonte do provável, não temos a recear que nos fustiguem com «provas» de que o mito não ocupa, em relação a outros traços culturais, um lugar privilegiado — de que ele não é traço, mas o plano do traçado, o que designa a cada traço a sua posição, de modo a configurarem-se todos em «cultura», num ou noutro tipo de correlação entre «homem» e «mundo». [Eudoro de Sousa  ; EudoroMito:33-34]


Não nos detém eventualidades insólitas, nem mesmo as que podem beirar o absurdo. Em primeiro (e talvez único) lugar: que à existência histórica tenham vindo culturas inegavelmente adversas ao seu mito, nas quais, por conseguinte, ao «mítico» se contrapõe o «lógico» e ao mito se opõe uma verdade tanto mais verdadeira quanto menos comprometida com o tão muito ou o tão pouco mítico que lhe oferece a poesia, em qualquer de suas dimensões artísticas. Como pode o mito configurar a cultura que manifestamente o recusa? Claríssima referência à Grécia, cuja mitologia não cessa de atrair-nos, ainda que, na maioria dos casos, só pelo lado da fantasia. Tão certo parece que na mitologia grega não se encontra o Projeto da Grécia como cultura bem determinada por mito que alguém tenha relatado. Mas, invertamos os termos de uma proposição precedente: «o plano do traçado, o que designa a cada traço [cultural] a sua posição, de modo a configurarem-se, [34] todos eles, em ‘cultura’, num ou noutro tipo de relação entre ‘homem’ e ‘mundo’ — é mito». No caso grego, teríamos, pois, de contar com a existência de um mito inexpresso como tal, quer dizer, como não sendo nenhum dos que perfazem a sua mitologia; teríamos de verificar que esse, seguindo o pendor da curva de maior probabilidade, não consta do «corpus mythicum» da Grécia, porque, mesmo em estado de extrema lacunaridade ou de irremediável fragmentação, o que neste se apresenta é o mito do mundo mediterrâneo pró-helênico, não poucas vezes inabilmente traduzido em «espírito grego», enquanto aquele que mais propriamente prenunciaria a Grécia ainda nos parece que esteja oculto sob a descoordenação e a desconexão dos múltiplos e multiplamente contraditórios aspectos da cultura helênica. A Grécia que venha a descobrir-se por inesperado e imprevisível salto por cima dos marcos que assinalam as fronteiras da Grécia Renascentista, da Grécia Iluminista, da Grécia Romântica, da Grécia Neo-Humanista, pela primeira vez nos desvelará o mito da sua origem. Mas não se dê precipitadamente o salto: não me parece que a Grécia, mostre-se ela como se mostrar, quando em se nos mostrar consinta, não será ainda o «lugar» em que se desempenha o primeiro drama cultural exclusivamente humano ou o de uma Humanitas que se constitua por exclusão dos deuses. [EudoroMito:34-35] LÉXICO: mito