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cogitatum

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

[89] A Terceira meditação faz tão-somente acentuar esse deslizamento, e isso se deve a uma dupla ocorrência que acaba por modificar o sentido do modo cartesiano de proceder, ou melhor, inverte-o. Em primeiro lugar, uma substituição decisiva se produz, a substituição do próprio cogito por sua relação com o cogitatum; a relação, ou melhor, o próprio cogitatum, torna-se o tema da análise. Não se trata ainda para Descartes   de acrescentar o conhecimento, mas fundá-lo definitivamente, como se já não fosse verdadeiramente fundado, como se o cogito já não o tivesse feito. O esquecimento do videor como imediação do videre, que originariamente o revela a si mesmo como um ver irredutível e indubitável, como sua realidade material, dá lugar, na problemática, a um projeto totalmente distinto, o de legitimá-lo, de modo mediato, pela veracidade divina, a qual deve ser lida na ideia de Deus entendida como um cogitatum. É preciso então descobrir essa ideia, fazer um inventário dos cogitata, assegurar-se deles enquanto cogitata, salvá-los, por conseguinte, da redução, e isso pressupondo a infalibilidade do ver que se trata de fundar. Pois a verdade de todo esse movimento, na medida em que evita a contradição, é justamente esta: o cogitatum escapa desde agora à redução por si mesmo, o que significa que o ser pensado, se nos atermos a ele tal como é pensado, quer dizer, tal como se dá, é um ser incontestável; e as ideias, a ideia de Deus, por exemplo, enquanto cogitata, consideradas em sua realidade objetiva, desde que primeiro não se formule a questão de saber se lhe corresponde uma realidade em si – se a realidade de um Deus efetivo corresponde à de sua ideia – não caem mais sob o golpe da dúvida. No entanto, acontece que ser pensado, ser um cogitatum qua cogitatum, significa ser visto. O que funda a validade de um conteúdo objetivo qualquer, por exemplo, a da realidade objetiva da ideia de Deus, é o fato de ser visto, é o ser-visto como tal e enquanto tal. O ser-visto como tal, o fato de ser visto, caso o consideremos como uma pura propriedade, como condição fenomenológica independente de seu conteúdo, do que é visto, é a própria visão, é o ver que se precipita no espaço de luz aberto pela ek-stasis. Ora, o cogito – se por um instante deixa de se aperceber nele a parecença originária de sua imediação essencial – não é nada mais que um tal ver. O aparecer do cogito, desde então, é identicamente o do cogitatum, o aparecer no qual o cogitatum é qua cogitatum. Um único aparecer perpassa o cogito e o cogitatum, o cogito é tão-somente o nome do aparecer do cogitatum, aquilo que faz do cogitatum um cogitatum. E se isso não foi notado antes é porque só se retém no cogitatum aquilo que é o cogitatum e não a sua condição de ser tal. Mas desde o momento em que o cogitatum é pensado enquanto tal, em seu aparecer, ou melhor, desde o momento em que o aparecer é apreendido por si mesmo, como o puro fato de ser visto, ele [aparecer]reabsorve-se no ver e lhe é idêntico. [MHPsique:89]


LÉXICO: cogitationes