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visão

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

O cogito encontra a sua formulação última na proposição videre videor: parece-me que eu vejo. Lembremo-nos brevemente do contexto em que se inscreve essa asserção decisiva. Tanto na Segunda Meditação como nos Princípios (I, 9), Descartes   acaba de praticar a epoché radical, em sua linguagem, duvidou de tudo, desta terra na qual põe os pés e anda, de seu quarto e de tudo o que vê nele, do mundo inteiro, o qual talvez não passasse por fim de ilusão e sonho. Em todo caso, ele vê tudo isso, mesmo que essas aparências sejam falsas e ele durma. A epoché, no entanto, atinge o próprio Descartes na medida em que ele pertence a este mundo, enquanto homem. Logo, ela atinge seu corpo, suas pernas e seus olhos: nada disso existe. Que significa, então, ver, ouvir, sentir calor para um ser que não tem olhos, nem corpo [58] e que talvez nem exista? “At certe videre videor, audire, calescere”: “Ao menos, parece-me que eu vejo, que eu ouço, que eu me aqueço” [1]. Por acaso, o que permanece no término da epoché não será essa visão, a pura visão considerada em si mesma, reduzida a si mesma, a essa pura experienciação [épreuve] de si mesma, abstração feita de toda relação a presumíveis olhos, a um dito corpo, a um pretendido mundo? Mas se a pura visão subsiste como tal, a título de “fenômeno”, o que é visto nela não subsistirá também, a esse título, a título de simples fenômeno: essas árvores com suas formas coloridas ou pelo menos essas aparências de formas e de cores, esses homens com seus chapéus ou, pelo menos, essas aparências de manchas e de vestes? Não continuarão a aparecer, essas aparências, tais como elas aparecem? Assim consideradas, não permanecerão a título de dados indubitáveis? [MHPsique:57-58]


A terceira tese de Descartes que impede a redução do videor ao videre é que o aparecer, em sua revelação originária a si mesmo, ignora a ek-stasis. Semelhante tese resulta da refutação explícita nas Quintas Respostas do texto extraordinário no qual Gassendi, ultrapassando, desta vez, tanto o seu sensualismo como uma definição empirista do conhecimento, apercebe-se, de repente, da essência desse conhecimento, a saber, da estrutura transcendental do sentir como condição de todo sentido particular, assim como, aliás, de todo pensamento como condição do ver sensível em especial. Pois como o ver sensível só é possível caso se cave entre si mesmo e o que é visto um espaço primitivo, um intervalo, é na exterioridade desse espaço e por ele, enquanto posto por ele diante do ver, que o que é visto advém na [parviens dans] condição que lhe é própria: o ser-visto, o ser-conhecido – de tal maneira que a própria visão, que o conhecimento não sejam nada mais que a abertura dessa distância no interior da qual conhecem, veem, nada mais que a ek-stasis. Caso se considere, por conseguinte, uma “faculdade”, entendendo necessariamente por isso um poder de conhecimento seja ele qual for – e o ver sensível é um desses – esta “faculdade até quando não está fora de si... não pode formar a noção de si mesma”, isso é, não pode se ver nem se conhecer. Aqui está “porque e como se pode fazer com que o olho não se veja a si mesmo, e que o entendimento não se conceba de modo algum”. Ver-se, conhecer-se implica, para Gassendi, uma espécie de afecção por si, um aparecer-se a si mesmo, uma automanifestação, a qual não é, todavia, possível, segundo ele, senão sob a forma do ver e em conformidade com as condições que lhe são próprias, a saber, na luz da exterioridade e por ela, na ek-stasis. “E porque pensais que o olho, não podendo ver a si mesmo em si, poderia se ver, entretanto, em um espelho? É sem dúvida porque entre o olho e o espelho há um espaço, um intervalo...” Mas o que é válido para o olho, vale também para o espírito, o qual não é nada mais que o conjunto de pressuposições ontológicas radicais aqui formuladas por Gassendi: “dai-me então um espelho que possa refletir todos os vossos movimentos... poderíeis vós mesmos então vos ver e vos conhecer, porém, a verdade seja dita, não por um conhecimento direto, mas, no mínimo, por um conhecimento refletido; de outro modo, eu não vejo que possais ter alguma noção ou ideia de vós mesmo” [2].

Encontra-se também nesse ponto, ainda segundo Gassendi, a razão pela qual não temos ideias inatas, mas somente adquiridas e provenientes de fora, posto que a exterioridade constitui o meio de toda recepção, de toda experiência possível. Ora, Descartes rejeita, de modo brutal, essas pressuposições que, de fato, dominam a história do pensamento ocidental: “Vós comprovais vosso argumento mediante o exemplo... do olho que não pode se ver a não ser no espelho: ao que é fácil responder que não é o próprio olho que se vê nem o espelho, mas sim o espírito, o qual unicamente conhece o olho, o espelho e a si mesmo” [3]. Não é então o ver exposto em sua estrutura extática – o olho e seu espelho – que constitui a efetividade primeira da fenomenalidade e seu surgimento. Muito pelo contrário, o ver só pode ver o que é visto se, primeiramente, for possível como ver, quer dizer, apercebido em si mesmo, de tal maneira que essa apercepção interna da ek-stasis a precede e não é constituída por ela. Ela é o originário aparecer a si do aparecer, o Uno da Diferença, a interioridade radical da exterioridade radical, o conhecimento interior que precede o adquirido, o videor do videre, o que conhece o olho, o espelho e a si mesmo, e que Descartes denominou espírito. [MPsique:64-65]


LÉXICO: visão

Observações

[113. Seconde Méditation, FA, II, p. 186, 422 ; AT, VIII, p. 29, IX, p. 23.

[2Cinquièmes Objections, FA, II, p. 737-738 ; AT, VIII, p. 292.

[3Réponse aux Cinquièmes Objections, FA, II, p. 810 ; AT, VIII, p. 367.