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melancolia

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Nesta altura começa a tornar-se visível a região a cuja configuração espiritual estava destinado um itinerário que, tendo se iniciado nas pegadas do demônio meridiano e do seu cortejo infernal, nos levou até o gênio alado da melancolia düreriana e em cujo âmbito a antiga tradição, que se consolidou com este emblema, talvez poderá encontrar um novo fundamento. A perda imaginária que se apodera tão obsessivamente da intenção melancólica não tem objeto real algum, porque sua fúnebre estratégia está voltada para a impossível captação do fantasma. O objeto perdido não é nada mais que a aparência que o desejo cria para o próprio cortejo do fantasma, e a introjeção da libido nada mais é que uma das faces de um processo, no qual aquilo que é real perde a sua realidade, a fim de que o que é irreal se torne real. Se, por um lado, o mundo externo é narcisisticamente negado pelo melancólico como objeto de amor, por outro, o fantasma obtém dessa negação um princípio de realidade, e sai da muda cripta interior para ingressar em uma dimensão nova e fundamental. Não sendo mais fantasma e ainda não sendo signo, o objeto irreal da introjeção melancólica abre um espaço que não é nem a alucinada cena onírica dos fantasmas, nem sequer o mundo indiferente dos objetos naturais. Mas é nesse lugar epifânico intermediário, situado na terra de ninguém, entre o amor narcisista de si e a escolha objetual externa, que um dia poderão ser colocadas as criações da cultura humana, o entrebescar das formas simbólicas e das práticas textuais, através das quais o ser humano entra em contato com um mundo que [53] lhe é mais próximo do que qualquer outro e do qual dependem, mais diretamente do que da natureza física, a sua felicidade e a sua infelicidade. O locus severus da melancolia, “que, porém, segundo Aristóteles, significa engenho e prudência” é, também, o lusus severus da palavra e das formas simbólicas, mediante as quais, de acordo com as palavras de Freud  , o homem consegue “gozar dos próprios fantasmas sem escrúpulo nem vergonha”; e a topologia do irreal que ela delineia na sua imóvel dialética é, ao mesmo tempo, uma topologia da cultura. [1]

Não nos surpreende, nessa perspectiva, que a melancolia tenha sido identificada pelos alquimistas com Nigredo, o primeiro estágio da Grande Obra que consistia, segundo a antiga máxima espagírica, em dar um corpo ao incorporeo e em tornar incorporeo o corpóreo. [2] É do espaço aberto pela sua obstinada intenção fantasmagórica que toma impulso a incessante fadiga alquimista da cultura humana, a fim de se apropriar do negativo e da morte, e de plasmar a máxima realidade apreendendo a máxima irrealidade. [AgambenE:53-54]


LÉXICO: melancolia; abatimento

Observações

[1A operação topológica da melancolia pode ser representada com o seguinte esquema:

Fantasma (F), Objeto externo (O), Objeto irreal (O com X sobreposto): o espaço que eles delimitam é o tópos simbólico melancólico.

[2Ilustração do primeiro Ripley Scrowle, pintada em Lübeck (Alemanha) em 1588 (Ms. Add. Sloane 5025, British Museum), mostra o alquimista como melancólico para representar a primeira fase da obra.