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desespero

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

A teoria do desespero em Kierkegaard   demonstra que o drama do espírito humano não tem apenas raízes psicológicas, mas radica também no próprio ser do homem; o desespero é ôntico, é uma categoria do espírito, como o pecado, e não pode ser examinado só como sintoma de neuroses colhidas na infância individual. O desespero que resulta, segundo Kierkegaard, do querer ser si mesmo ou do não querer ser si mesmo, vem de uma discordância interna da síntese que o homem é: síntese de finito e de infinito, de liberdade e de necessidade, de virtualidade e de realidade. Essa discordância não é uma doença no sentido vulgar, que se apanhou algum dia, em virtude de algum trauma e que depois se manifestou num determinado momento da evolução individual: a discordância que constitui o desespero não é uma entidade psicológica. Cada instante real do desespero “pode ser reconduzido à sua possibilidade” e a cada instante em que se desespera, apanha-se novamente o desespero. Não, o desespero não é uma doença comum — uma neurose — como se diria hoje; é uma categoria da eternidade, é uma doença sui generis, a única doença mortal verdadeira.

O desespero de Kierkegaard deve ser compreendido sob a perspectiva em que ele mesmo o colocou e nunca no plano apenas psicológico. Seria fácil encontrar em sua biografia sintomas de neuroses; Sören sofreu desde o berço a influência maléfica de um pai rigoroso, pietista luterano, crente até o fanatismo e cuja personalidade se lhe apresentou primeiramente [181] como a de um homem perfeito; mas esse homem, que era crente, pecava; tendo fé, sofria; arrastava consigo a imagem de um desespero mudo, vendo morrer todos os seus antes dele. E ao cair de uma tarde, no alto de uma rocha sombria, banhada pelas neblinas nórdicas, a figura do pai, braços estendidos para o céu implacável, blasfemando contra Deus, imprimiu na alma de Søren, para todo o sempre, a revolta do homem contra Deus, o martírio do finito impotente contra o infinito; numa palavra, a síntese de sua teoria, que é o desespero de não querer ser si mesmo, depois duplicado no desespero de querer sobrepor-se a Deus. Nunca mais conseguiu Søren libertar-se do trauma desta cena; a imagem negra do pecado, o terror do pecado, diariamente instilado em sua alma pela crença desesperada do pai, acabou por lhe dar o sentimento de que a vida mesma é pecado. Este sentimento se agravou pela consciência que ele tinha de ser filho de uma ligação ilícita de seu pai com uma criada [1]; Søren se viu concebido no pecado e fruto do pecado. A noção cristã de que nós nascemos sob a mácula do pecado original, avultou ainda no seu espírito com o fato de ser ele, concretamente, o fruto desse determinado pecado de seu pai. Não era um cristão apenas concebido no pecado original, mas concebido ainda de um determinado pecado concreto de seu pai, que se adicionava ao pecado genérico de que nascemos [2]. Ele sempre se sentiu como dotado de uma existência fraudulenta; e referindo-se ao acidente de ter nascido num ano de bancarrota, comparou-se à moeda falsa, posta indevidamente em circulação. (Heraldo Barbuy  )


LÉXICO: desespero e afins

Observações

[1Søren nasceu somente dois meses depois do casamento, em segundas núpcias de seu pai, com sua mãe.

[2Como diz a Escritura: Ecce enim in iniquitatibus conceptus sum, et in peccatis concepit me mater mea. (Ps. 50)