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niilismo

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Há, obviamente, reações contra esse progresso rumo ao nada [niilismo = dúvida da dúvida]. Essas reações são, entretanto, reacionárias no sentido de tentarem fazer retroceder a roda do desenvolvimento. São desesperadas. São tentativas de reencontrar a realidade nos níveis já esvaziados pelo intelecto em seu avanço. No campo da filosofia são caracterizadas pelo prefixo melhorativo “neo” (neokantianismo, neo-hegelianismo, neotomismo). No campo da ciência pura são caracterizadas por um esforço de reformular as premissas da disciplina científica em bases mais modestas. No campo da ciência aplicada são caracterizadas por uma esperança já agora inautêntica em uma nova revolução industrial, capaz, esta sim, de produzir o paraíso terrestre. No campo da arte resultam naquele realismo patético chamado “socialista”, que não se chama a si mesmo de “neorrealista” por pura questão de pudor. No campo da “razão prática” assistimos a tentativas de uma ressuscitação das religiões tradicionais, e pululam as seitas de religiões inventadas ad hoc ou buscadas em regiões geográfica ou historicamente distantes. No campo da política e da economia ressurgem inautenticamente conceitos esvaziados e superados há muito, como, por exemplo, o conceito medieval da “soberania”. Nesse campo buscam a realidade, já agora completamente inautêntica, no conceito do “sangue” (nazismo), da “classe” (marxismo) ou da “liberdade de empreendimento” (neoliberalismo), conceitos esses emprestados de épocas hipotéticas ou semi-hipotéticas passadas. Todas essas reações [17] são condenadas ao malogro. Querem ressuscitar fés mortas ou inautênticas ab initio.

Embora seja o niilismo uma situação existencial insustentável, precisa ser tomado como ponto de partida para toda tentativa de superação. A inautenticidade das reações anteriormente esboçadas reside na sua ignorância (autêntica ou fingida) da situação atual da filosofia, da ciência pura e aplicada, da arte, do indivíduo dentro da sociedade e da sociedade em face do indivíduo. Reside na ignorância do problema fundamental: em todos esses terrenos, já agora altamente intelectualizados, a dúvida desalojou a fé e se perdeu o senso da realidade. Essa situação deve ser aceita como um fato, embora talvez não ainda como fato totalmente consumado. Resíduos de fé podem ser encontrados em todos esses terrenos, menores no campo da filosofia, maiores no campo da sociedade, mas resíduos condenados. Não é a partir deles que sairemos da situação absurda do niilismo, mas a partir do próprio niilismo, se é que sairemos. Trata-se, em outras palavras, da tentativa de encontrar um novo senso de realidade.

Visto coletivamente, é o progresso da intelectualização, portanto o progresso da dúvida com seu consequente esvaziamento do conceito “realidade”, um processo histórico. Por sua própria natureza manifesta-se com precedência no [18] campo da filosofia, embora esteja acompanhado, surdamente, por desenvolvimento paralelo em todos os demais campos da situação humana. A vinda do niilismo foi, portanto, adivinhada e prevista por filósofos antes de qualquer outra camada. A palavra “niilismo” foi amplamente utilizada, num sentido muito próximo do presente, por Nietzsche  . A busca de um novo senso de realidade no campo da filosofia não é, portanto, uma novidade. Não podemos, entretanto, afirmar que tem sido acompanhada até agora de um êxito retumbante. Surgiu, isto sim, uma nova maneira de filosofar, e novas categorias de pensamento. Foi introduzido o conceito “vontade” e o conceito aliado “vivência”, ambos de cunho anti-intelectual. A especulação filosófica deslocou-se para o campo da “ontologia” (sinônimo pudico da metafísica ostensivamente desprezada), fato que, por si só, prova a procura de uma nova realidade. Por outro lado, aprofundaram-se estudos lógicos, a ponto de invadir a lógica o campo da própria “ontologia”, fato que prova a preocupação da filosofia com uma nova interpretação do intelecto e sua função de produtor e destruidor de realidade. Entretanto, por revolucionários e criadores que sejam esses pensamentos, não chegaram a “convencer”, no sentido de provocar um novo senso de realidade, uma nova “fé”. Muito pelo contrário, contribuíram para o alastramento do niilismo, o qual pretenderam combater, já que eram intelectualizações, embora anti-intelectuais. A sua influência decisiva sobre a arte e a ciência (mais [19] especialmente a psicologia) era conduzida a uma derradeira intelectualização de camadas até agora não invadidas pelo intelecto. Talvez por terem sido destruidores da velha realidade, contribuíram para o surgimento da nova, pelo menos negativamente.

Visto individualmente, é o progresso da intelectualização, portanto o progresso da dúvida, o abandono da fé original, da “boa-fé”, em prol de uma fé melhor, a saber, de uma fé menos ingênua e inocente. A progressiva perda de senso de realidade que acompanha o progresso intelectual é experimentada, inicialmente, como libertação, como superação de preconceitos, e é, portanto, uma experiência exuberante. É, entretanto, acompanhada, desde o início, por um sentimento ínarticulado, e portanto inconsciente, de culpa. Esse sentimento de culpa é compensado nas “fés melhores” que o intelecto cria para si no curso do seu avanço. Quando, por fim, o intelecto se vira contra si mesmo, quando duvida de si mesmo, o sentimento de culpa se torna consciente e articulado, e acompanhado da hesitação característica da dúvida suprema, domina a cena. Esse clima de hesitação e de culpa, ou seu lado avesso, o clima do engagement sem compromisso e escrúpulo, são, portanto, os sintomas dos filósofos mencionados. Embora a hesitação e o sentimento de culpa sejam mais honestos, intelectualmente, que o engagement e o fanatismo, são ambos basicamente atitudes de desespero. Atestam a perda da fé no intelecto, sem contribuir [20] positivamente para uma superação da situação niilista na qual se encontram. Esta é a cena da filosofia atual. [FlusserDuvida:16-20]


LÉXICO: niilismo