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inconsciente

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Quando, pois, o conceito de inconsciente apareceu no pensamento moderno? Ao mesmo tempo em que o de consciência e como sua exata consequência. Descartes   foi o responsável por ter introduzido o conceito de consciência com o sentido que tem para nós – não mais o de consciência moral, o qual se referia ao modo de julgar do homem e à sua dignidade, ao modo de avaliar o seu lugar na escala dos seres e no cosmos. O homem era, então, apenas uma realidade da qual importava reconhecer os caracteres, notadamente os mais eminentes. Com Descartes, pelo contrário, o conceito de consciência recebe a significação ontológica radical conforme a qual designa o aparecer considerado por si mesmo, não qualquer coisa, mas o princípio de toda a coisa, a manifestação originária na qual tudo o que é suscetível de existir advém na [parviens dans; v. imanência] condição de fenômeno e, assim, de ser para nós.

Porém, Descartes introduziu o conceito de consciência com um tal grau de profundidade que o seu alcance primeiro não pôde ser preservado nem verdadeiramente apercebido, nem sequer no momento de sua retomada pela fenomenologia contemporânea que, no entanto, pretendia lhe dar o seu pleno desenvolvimento – nem sequer, digamos, pelo próprio Descartes. Será que se prestou suficiente atenção ao fato, incansavelmente repetido, de que o cogito se cumpre apenas com a epoché do mundo, com a retirada não só de tudo o que é, mas da fenomenalidade do mundo como tal, a saber, o Dimensional extático do qual o pensamento aufere a sua possibilidade e com o qual está de acordo desde a Grécia? O que Descartes buscou com tanta paixão, não se obtém, então, nem como a abertura de um Aberto outorgada por uma Natureza originária, nem sob a forma da ἰδέα de Platão, de sua percepção dita cartesiana ou da representação dos modernos – mas precisamente pela recusa deles e como o seu totalmente outro, o totalmente outro da ek-stasis. Segundo Descartes, “eu penso” significa tudo, menos pensamento. “Eu penso” significa a vida, aquilo que o autor da Segunda Meditação** denominava “alma”.

Infelizmente, as aspirações científicas de Descartes, ou melhor, sua pretensão filosófica, aliás, legítima em si, de fundar a própria ciência assegurando-se de suas condições e conferindo-lhe assim um alicerce “certo”, sobrepuseram-se ao projeto primitivo, desviando-o de suas metas verdadeiras e relegando-o finalmente ao esquecimento. Fracassou o esforço de uma fenomenologia radical capaz de discernir, no seio mesmo do puro Genealogia da psicanálise: o começo perdido [42] aparecer e sob a fenomenalidade do visível, uma dimensão mais profunda na qual a vida se alcança a si mesma antes do surgimento do mundo. Em vez de suscitar investigações decisivas, perdeu-se simplesmente nada menos do que aquilo que implicava o fato extraordinário de o conceito de consciência, ao fazer sua entrada na cena filosófica, desdobrar-se misteriosamente a ponto de designar, ao mesmo tempo, o visível e o invisível, essa revelação mais antiga à qual adveio [parviens dans; v. imanência] tão-somente na epoché do mundo. Assim, produziu-se o desvio historial pelo efeito do qual foi abandonada a via aberta em direção ao Começo, ao passo que a “filosofia da consciência” se engajava em uma direção oposta que conduzia ao mundo e ao seu saber, a uma teoria transcendental do conhecimento e da ciência, tornando possível, por sua vez, o domínio das coisas e o universo da técnica. Será por acaso que se encontra precisamente em Kant   o âmbito no qual essa filosofia da consciência alcança o estatuto de uma teoria elaborada do universo objetivo, sob a forma de uma ontologia da representação – quer dizer, da experiência entendida como a relação de um sujeito com um objeto em geral? Será por acaso que a crítica da alma cartesiana se torna sistemática, vedando definitivamente ao homem de nosso tempo o acesso ao que constitui, de uma só vez, o seu ser mais interior e a essência originária do ser nele?

Na medida em que Freud   vai buscar, segundo suas próprias palavras, o conceito de consciência na tradição filosófica, assim como no senso comum – “Não é preciso explicar aqui o que denominamos consciente e que é a consciência mesma dos filósofos e a do grande público” [1] – e que a Bewuβtheit freudiana designa explicitamente a consciência representativa [2], então a afirmação de que o fundo da psique escapa a uma tal consciência – nada sendo que se proponha inicial ou habitualmente como o fora de uma exterioridade qualquer, na luz de uma ek-stasis –, a afirmação de um inconsciente, reveste-se assim de um alcance ontológico imenso: estabelece que a essência originária do ser se esquiva ao meio da visibilidade no qual ela é procurada, desde a Grécia, pelo pensamento filosófico e científico. Em uma filosofia da consciência, ou da natureza, que reduz a fenomenalidade à transcendência de um mundo, o inconsciente é o nome da vida.

Torna-se aqui evidente aquilo que, filosoficamente, faz da obra de Freud a de um epígono. [MHPsique:41-42]


LÉXICO: inconsciente

Observações

[1Abrégé de psychanalyse, trad. A. Berman, Paris, PUF, 1975, p. 22; GW, XVII, p. 81. Para os textos de Freud, damos as referências por uma tradução francesa facilmente acessível, assim como pela edição das obras completas, Gesammelte Werke, Londres, Imago Publishing Co., Ltd. I, designada pela sigla GW, seguido do número do tomo e da página.

[2Sobre este assunto, cf. infra, cap. IX.