Página inicial > Termos e noções > autotélico

autotélico

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

«Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,
Perante esta única realidade terrível — a de haver uma
[realidade,
Perante este horrível ser que é haver ser,
Perante este abismo de existir um abismo,
Este abismo de a existência de tudo ser um abismo,
Ser um abismo por simplesmente ser,
Por poder ser,
Por haver ser!
— Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,
Tudo o que os homens dizem,
Tudo quanto constroem, desfazem, ou se constrói
[ou se desfaz através deles,
Se em pequena!
Não, não se em pequena... se transforma em outra coisa —
Numa só coisa tremenda, negra e impossível,
Uma coisa que está para além dos deuses, de Deus,
[do destino —
Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino,
Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres,
Aquilo que subsiste através de todas as formas,
De todas as vidas, abstratas ou concretas,
Eternas ou contingentes,
Verdadeiras ou falsas!
Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou de fora,
Porque quando se abrangeu tudo não se abrangeu explicar
[porque é um todo.
Porque há qualquer coisa, porque há qualquer coisa,
[porque há qualquer coisa!
Minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor,
E é com minhas ideias que tremo, com a minha consciência
[de mim.
Com a substância do meu ser abstrato
Que sufoco de incompreensível,
Que me esmago de ultratranscendente.
E deste medo, desta angústia, deste perigo do ultra-ser,
Não se pode fugir, não se pode fugir, não se pode fugir!» [Fernando Pessoa   / Álvaro de Campos]

Mas não queira eu ainda que de mim se apossasse a vertigem do Grande Abismo (Khásma méga) dos Caos Excessivo. Nem a ele se chega ninguém que não tenha percorrido antes a coroa circular da trans-objetividade. Por isso, retomo o discorrer, no ponto em que sugeria não éramos nós, mas os deuses, sujeitos objetivantes da coisa (que já não é «coisa») a que se dá o nome de «símbolo». No desempenho do ritual é que o homem perde toda a iniciativa de fazer o que quer que seja. Ele sente (quando se sente) como sendo feito, como sendo sonhado, como sendo poesia de outrem, outrem que, através do drama descritivo e explicativo de sua própria natureza, do drama da sua existência, faz homens que já não são o Homem e mundos que já não são o Mundo, não, simplesmente, «coisas» que o Homem fazia, desfazendo símbolos, na medida em que parte de cada um jogava fora. Mas a parte do símbolo, que o «homem humano» rejeita, é o «ser-origem» da coisa, e é claro que tinha de rejeitá-lo, para que pudesse supor que ele mesmo, de per si, era o autor de um mundo — Mundo «objetivo», evidentemente. [EudoroMito:138-139]


LÉXICO: autotélico