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apercepção

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Mas é da vontade e de sua inerência possível ao pensamento definido como um entendimento que se trata. De que modo, então, essa vontade em si infinita é suscetível de se revelar, em sua infinidade, se a sua revelação é confiada a um poder essencialmente finito? A qual finitude diz respeito à fenomenalidade mesma que promove e na qual consiste, e a designa como um lugar finito, de tal maneira que tudo o que aparece nesse lugar, mostrando sempre apenas um aspecto parcial e limitado de seu ser, transbordá-lo antes por todos os lados e se desviar dele? Se, todavia, a vontade recusa entregar o seu ser essencial sob a forma de um perfil oferecido a um ver – e, muito menos, a uma série indefinida de perfis – se não há algo como faces externas de seu ser pelo qual o recolhimento e a somação permitissem apreender a sua essência, é porque ela só é possível e infinita como potência, e, como [80] tal, nunca é apreensível sob um perfil qualquer nem em uma imago, no “fora de si” de uma exterioridade qualquer, mas somente faz a prova de si [s’éprouve] mesmo interiormente e tão-somente advém em si [parvient en soi] e em própria potência para apoderar-se dela e desdobrá-la através dessa experienciação [épreuve] muda de si e em sua paixão. Do mesmo modo, foi como paixão, conforme vimos, que Descartes   caracterizou expressamente a aperceptio originária na qual a própria vontade vive imediatamente enquanto querer, enquanto proveniente diretamente da alma e dependendo apenas dela. A exclusão aqui explícita do corpo afasta dessa vez toda possibilidade de explicitar por ele a afetividade dessa aperceptio primordial – como se pretendia fazê-lo no caso da imaginação e do sentido.

Surge, então, em plena luz o que é essa paixão que permite à vontade revelar-se em si mesma, de uma só vez e tal como é, na infinidade de sua potência – o que é o pensamento em sua essência mais originária, não mais o videre do entendimento na finitude de sua ek-stasis, mas a primeira parecença [semblence] do videor, o primeiro aparecer tal como se aparece a si mesmo na autoafecção de sua imanência radical. Então se torna significativa a oposição crucial do videor e do videre e a decomposição do pensamento segundo esses dois modos fundamentais da fenomenalidade. Não é precisamente ao ver do entendimento que podem pertencer o sentido, a imaginação, a vontade, nem, aliás, o sentimento, que apenas se subtraiu da enumeração por constituir uma unidade despercebida. O que funda a inerência de todos esses modos a uma mesma essência é, coextensiva e cointensiva ao seu ser, a aperceptio originária, essa “espécie de intelecção” que todos trazem em si como aquilo que os revela originariamente a si mesmos tais como são na totalidade de seu ser, que traz também em si o entendimento, porquanto o próprio videre apenas é possível como um videre videor.

Que a regressão rumo ao primeiro aparecer e rumo ao começo se cumpre no cogito não a partir de um modo específico do pensamento, do entendimento, mas pela exclusão dele, pelo ato obscuro e pela paixão infinita de uma vontade cega, que rejeita com um só gesto todo o inteligível – aí está o que deveria dar que pensar. Pensar que o pensamento mais inicial, entrevisto por Descartes na aurora da cultura moderna, não tinha justamente nada em comum com aquele que iria guiar essa cultura, pelo viés das teorias do conhecimento e da ciência, rumo a um universo tal como o nosso; mas que esse pensamento inaugural, pelo contrário, em seu afastamento do mundo e em sua irredutibilidade ao ver, na subjetividade radical de sua imediação a si mesmo, merecia um outro nome, o qual Descartes lhe deu, [81] aliás, o nome da alma, ou, caso se prefira, o nome de vida. Mas o próprio cartesianismo não soube se manter sobre essa crista estreita de significações e, para compreender esse mundo de nosso tempo, é antes o seu declínio que convém interrogar. [MHPsique:79-81]


LÉXICO: apercepção