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processão

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

“Há, portanto, como que uma grande vida estendida longitudinalmente, sendo cada uma de suas partes diferente da seguinte, mas o todo contínuo por si mesmo.” (V. 2 [11] 2. 26-28)

Vida e atividade: isso é a realidade para Plotino  . Mais especificamente: instanciações de perfeição e de intensidade de vida e atividade. Exatamente: instanciações de perfeição e de intensidade da vida-atividade-intelecção. Para Plotino, todo ente é uma vida que se constitui em sua atividade essencial, e toda vida é uma forma de intelecção (nóesis); mas uma intelecção é mais obscura que a outra, como também a vida [III. 8 [30] 8.17-18]: assim, há uma intelecção de primeiro grau, uma de segundo, uma de terceiro e outra de quarto grau, que correspondem respectivamente aos graus de vida. A vida mais perfeita é a do intelecto, que é intelecção imediata, perfeita, em que sujeito e objeto de intelecção são idênticos; após ela, seguem-se os três níveis de vida da alma – o racional, o sensitivo e o vegetativo – aos quais correspondem intelecções gradativamente menos perfeitas e mais obscuras: racionalidade discursiva (diánoia), sensibilidade (aísthesis) e vegetatividade (phytikón) [v. sensações]. Em suma, qualquer vida é uma atividade, por mais ínfima que seja, e toda vida-atividade é intelecção, de modo que, como é a atividade que constitui a essência de um ente (como logo veremos), pode-se dizer que diferença ontológica na realidade plotiniana é uma diferença de intensidade e perfeição de vida-atividade-intelecção – ou, empregando terminologia mais plotiniana, existem apenas graus de perfeição contemplativa [Essa é a lição subversiva e originalíssima do tratado Sobre a natureza, a contemplação e o uno (III. 8 [30]).]. Por isso, Plotino poderá dizer que até as plantas são dotadas de intelecção [III. 8. [30] 1. Nesta passagem, Plotino não fala de intelecção, mas de contemplação (theoría); contudo, nesse caso, os termos são equivalentes.]. Estamos habituados a entender a vegetatividade como crescimento e nutrição inconscientes e involuntários, mas Plotino, não: para ele, é intelecção, esvaída e obscura, mas ainda assim intelecção. Façamos uma especificação genérica momentânea: os pólos da realidade – o uno e a matéria – estão, respectivamente, além e aquém da vida, da intelecção e da atividade. O real, pois, é o que está abaixo do uno – que é mais do que real – e acima da matéria – que é menos do que real.

Embora Plotino não tenha formulado uma descrição da realidade de modo sistemático como um Proclo   ou um Damáscio  , podemos perceber em sua reflexão cinco princípios que regem a processão da realidade a partir do uno [1]. Antes de tratar das instanciações desse fluxo vital, conheçamos esses princípios:

a) O princípio da dupla atividade: como mencionamos acima, a essência de um ente é constituída por sua atividade; cabe, agora, acrescentar que, em cada nível da realidade, há dois tipos de atividade: a atividade da essência de cada ente (enérgeia tês ousías), constitutiva da essência de cada coisa e intrínseca a ela, e a atividade resultante da essência de cada coisa (enérgeia ek tês ousías), derivada da primeira mas dela distinta [V. 4 [7] 2.27-30]. A imagem usada por Plotino é a do fogo: um é o calor imanente ao fogo, outro o liberado por ele [V. 1 [10] 3.10; V. 4 [7] 2.30-33]. Esse princípio é de validade universal [IV. 3 [27] 10.32-35; IV. 5 [29] 7.13-20], mas de aplicação analógica [Igal  , 1992, vol. I, p. 29]: por ser de validade universal, pode ser empregado para explicar a processão como transmissão em cadeia do fluxo vital, uma vez que cada instanciação, ao mesmo tempo em que é constituída essencialmente por uma atividade, libera e transmite uma nova atividade; sendo de aplicação analógica, pode ser aplicado ao primeiro princípio [2], embora ele esteja além da essência e não seja possível falar propriamente de uma atividade constitutiva de sua essência: como especificará Plotino, ele é uma atividade sem essência [VI. 8 [39] 20.9-10].

b) O princípio da produtividade do perfeito: a atividade resultante da essência é consequência necessária da atividade da essência porque todos os entes, quando atingem sua perfeição, engendram [V. 1 [10] 6.38]. Todos os seres vivos, observa Plotino, ao alcançarem a maturidade, engendram um novo ser semelhante a si; mesmo coisas inanimadas como o fogo ou a neve irradiam a atividade de sua essência: essa atividade irradiada é semelhante àquela que é constitutiva da essência e possui efeito assemelhador, permitindo que a essência se perpetue – o calor do fogo aquece seu entorno, assemelhando-o ao fogo. Ora, se constatamos que esse fato é verdadeiro no âmbito sensível, devemos induzir que é ainda mais no âmbito inteligível, sendo sumamente perfeito no primeiro princípio, imitado por todas as coisas. [V. 1 [10]. 6. 30-39; V. 4 [7] 1. 23-36] A imagem plotiniana para esse princípio é o transbordamento: o intelecto é o transbordamento da superabundância do uno, assim como a alma é o derramamento da atividade perfeita do intelecto [V. 2 [10] 1.7-16].

c) O princípio da doação sem perda: como a atividade resultante da essência é consequência necessária da atividade da essência, não há diminuição dessa essência; isto é, a essência se constitui em uma atividade, dessa atividade resulta uma outra, que é o transbordamento da atividade pela qual a essência é o que é: o calor liberado pelo fogo é resultado de sua atividade intrínseca e nenhuma diminuição ou enfraquecimento de sua essência ocorre por causa dessa atividade. É importante enfatizar que não há, nessa doação, transmissão material. É segundo esse princípio que Plotino não cessa de comparar o uno a uma fonte inesgotável que alimenta todos rios sem consumir-se neles ou, ainda, à raiz que mantém viva e nutrida uma gigantesca árvore [IIl. 8 [30] 10.3-14; a imagem da fonte aparece, por exemplo, em I. 6 [1] 9.41; VI. 9. [9] 5.36,9.1-2, 11. 31; VI. 7 [38] 12. 23-26; 23. 21; VI. 8 [39] 14. 30-31; a da raiz, em VI. 9 [9] 9. 2; VI. 8 [39] 15. 33-36; ffl. 3 [48] 7.10-13]. “Permanecer” (ménein) é o verbo empregado constantemente por Plotino para exprimir o princípio de doação sem perda.

d) O princípio da degradação progressiva: o produto é do mesmo gênero do produtor, porém sempre inferior, ocupando um nível metafisicamente inferior da escala hierárquica. O anterior é diferente do posterior, porque sua perfeição ontológica é maior; se sua perfeição ontológica é maior, então ele realiza a atividade que lhe concerne mais intensamente: a realidade plotiniana é hierárquica justamente porque a perfeição ontológica de um ente depende da perfeição da atividade de seu produtor [III. 8 [30] 5.17-25; V. 5 [32] 13.37-38]. A processão, pois, é um descenso contínuo [I.8 [51] 7.17-20; V. 3 [49] 16. 5-8], que se inicia na perfeição, no uno, e termina na fronteira da nulidade, a matéria. Entretanto, convém ressaltar a continuidade da processão: o produto é imediatamente inferior ao produtor, não havendo lacunas ou intermediários entre eles [V. 1 [10] 6.39 e 49; V. 4 [7] 1.40-41].

e) O princípio da gênese bifásica: o produto resultante da atividade de uma essência não é instantaneamente uma nova essência; seu estágio inicial é indefinido e sua definição depende de seu retomo para o produtor: em sua primeira fase, a atividade liberada pelo princípio emissor é uma espécie de matéria informe ou um ente em potência, que será informada ou atualizado na segunda fase. A realização do produto se dá, portanto, em dois momentos, ou fases, que são separáveis apenas logicamente: a primeira fase é processiva e, nesse momento, o produto ainda é indeterminado por não possuir conteúdo essencial; na secunda fase, marcada pelo movimento de retorno, o produto se volta para seu produtor e, contemplando-o, locupleta-se de conteúdo, recebe sua forma e atinge a perfeição que lhe é possível [III. 4 [15] 1. 6-16; V. 1 [10] 6.50]. Essas duas fases também obedecem ao princípio anterior, da degradação progressiva; a capacidade de contemplação decresce e, como o poder de conversão do produto é cada vez menor, seu conteúdo é cada vez mais inferior, assim como sua capacidade de produzir: o engendramento perfeito é o do intelecto, produto do mais perfeito dos produtores [III. 8 [30] 11.1-15], e o mais débil é o da matéria, que já não é capaz de contemplar e, em consequência, de engendrar outra coisa [III. 4 [15] 1; III. 9 [13] 3. 7-16]. [BARACAT]

Observações

[1Em minha dissertação de mestrado (Plotino, Sobre a natureza, a contemplação e o uno (III. 8 [30]). Tradução, introdução e notas, Editora da Unicamp, no prelo), chamava tais princípios de axiomas, apresentado-os conforme exigia a passagem comentada. Valho-me, agora, da organização de Igal (1992, voL I, pp. 28-32) para apresentar esses princípios de modo sistematizado.

[2Plotino o aplica ao primeiro princípio em V. 4 [7] 2. 26-38, mas cumpre notar que Meijer (1992, pp. 27-52) mostra de modo convincente que a noção de uno absolutamente transcendente só está presente em Plotino a partir do nono tratado (VI. 9); nos oito primeiros, o uno ainda se confunde com uma espécie de intelecto mais elevado.