Página inicial > Termos e noções > Alma

Alma

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Alma [psychê)

I. A “alma” (psychê) é tematizada no corpus platonicum como alma do mundo (“boa”/“ordenada-ordenadora” ou “má”/“desordenada”; Tim. 34b; Fil. 30a; Leis 896d-898c), alma dos deuses (Eutid. 302d-e; Fedro   246a; Fil. 30b; Tim. 34a-b, 39e; ver DEUS/DEUSES), alma dos astros (Tim. 38e s., 40b, 41d; Leis 898c ss.), alma dos demônios (Fedro 246e; Banq. 202d; Epín. 984d; ver demônio), alma da terra (Fedro 247a; Tim. 40b-c) e, finalmente, como alma dos homens, dos animais (Tim. 90e passim) e das plantas (Tim. 77a-c).

II. O conceito platônico de alma tem vários aspectos, que se juntam nela formando uma unidade (mia idea, ver IDEIA): o ser “indivisível” ou “divisível” (ver Ser e participação), o “mesmo” “indivisível” ou “divisível” (tauton, ver identidade), o diferente indivisível ou divisível (heteron, ver diferença) e o automovimento circular, numericamente determinado (ver pensamento e movimento; Tim. 34b ss.; cf. CORNFORD 1952, p. 59 SS.; KARFIK 2004, p. 204-206; Perger 1997, p. 86 ss., 123 s.; RADKE 2003, p. 488-496). Ela é chamada de “o que se move a si mesmo” (to auto hauto kinun), “o sempre movido” (to aei-kinêton), “fonte e início do movimento” (pêgê kai archê kinêseôs) “para tudo que é movido”, “primeira causa do devir e do perecimento” e da “modificação” (próton geneseôs kai phthoras aition; alloiôsis), princípio “da vida inteligente incessante” (zôê, to zên, apaustos kai emphrôn bios) (Féd.   71c, 105c-d; Fedro 245c; Crát. 399d-400b; Teet. 181b-d; Parm. 138b-c; Tim. 36e, 37a-b ss., 77b; Leis 891e, 893b-896b; cf. Brisson   1998c; Karfik 2004, p. 149 ss., 214-216, 221-241; PERGER 1997, p. 123 s., 149 ss.; PlETSCH 2003). Por isso, como vínculo entre o “ser eterno” (do inteligível, nus) e as “coisas em devir” e “em perecimento” (coisas perceptíveis, ver devir/geração e matéria), ele tem no Timeu  , por ação do criador do cosmo (ver demiurgo), uma participação nas duas esferas, as quais, por meio da alma, são constituídas como ordem inteligível do cosmo perceptível (Tim. 30a-c, 69a ss., Leis 899b), que, enquanto ser vivo (zôon), encerra em si todas as criaturas vivas, tal como um todo encerra em si suas partes, e está em processo de incessante rotação. Com ela surge simultaneamente o tempo, a “cópia eterna numericamente progressiva da eternidade, que permanece na unidade” (ver tempo; Tim. 27d-39e; cf. Perger 1997, p. 82 ss.; Karfik 2004, p. 174 ss.). Portanto, na medida em que a alma, na hierarquia da ordem do ser (ver graus do ser), não assume o grau primário, em relação às coisas em devir e em perecimento, das quais é causa, mas também não o último, ela é, de um lado, por agência “da melhor das coisas inteligíveis e eternamente existentes”, a “mais excelente das coisas geradas” (Tim. 36e-37a; cf. Cornford 1952, p. 94; Karfik 2004, p. 130 ss.; 185-201), e de outro, como algo não perceptível (Féd. 79a-c; Tim. 36e, 46d; Leis 898d-e) e primário em relação ao corpo, isto é, como algo que é “antes” do ou “anterior” ao corpo (proteron, emprosthen-, Féd. 72e-77b; Tim. 34b-35a, 46d-e; Leis 891e-892c, 896b-d, 899b), ela é aparentada (syngenés) com o “divino, imortal, inteligível, uniforme, indissolúvel e mesmo, o idêntico a si próprio” (theion, athanaton, noêton, monoeides, adialyton, aei hôsautôs kata tauta echon heautô), e por isso é descrita como “não-gerada” (agenêtos), “imutável” (adiaphthoros, anôlethoros) e “imortal” (athanatos; ver imortalidade) (Féd. 69e ss., especialmente 105b-107a; Fedro 245c-246a; Rep.   608c-611a; Fim. 36e; Leis 894b-898c). [SHÄFER]


Do poder criador da Inteligência ou Noûs procede a terceira hipóstase – a Alma do mundo (hèn kai pollá). Contemplando o Uno, o Noûs gera a Alma do mundo. Esta, contemplando o Noûs [Contemplando o Noûs, a Alma, através dele, vê o Bem, isto é, o Uno e torna-se “agatoforme”.], multiplica-se em todos os entes particulares do mundo sensível, sem dividir-se. A par da Alma do mundo, existem as almas individuais. Na Alma estão as matrizes (lógoi spermatikoí) de todos os entes, semelhando uma coincidentia oppositorum. Por isso, ela é hèn kai pollá. Dela procedem as almas e todas as formas dos seres sensíveis, ab aeterno [“(...) nós afirmamos que o mundo existe sempre e não há um momento em que não existiu (...)” (En. III, 2, 1, 20-21).], desde a planta até ao homem, tudo constituindo uma admirável harmonia e beleza. Logo, a Alma tem a função de organizar e governar o mundo sensível. A maneira dos estoicos, Plotino   professa que tudo forma uma sympátheia tôn hólôn, uma harmonia universal [Cf. En. IV, 4, 41]. A ordem do todo não sofre desfiguramento pelo mal: “É absurdo queixar-se das partes, com relação ao todo; as partes devem ser examinadas com relação ao todo, para ver se elas lhe convêm e lhe estão ajustadas; é mister ver o conjunto, sem dar importância aos mínimos detalhes” [En. III, 2, 3. 9-13].

Olhar apenas as partes “seria como alguém considerar de um animal inteiro somente um pelo (cabelo) ou um dedo dos pés, ou descurar a totalidade do homem que é um espetáculo divino” [En. III, 2, 3, 14-16].

A fim de preencher sua função organizadora, deve a Alma ter contemplado a organização inteligível no Intelecto (Noãs) transcendente. Se o Noûs é nóêsis noêseôs, a Alma universal, ao contrário, desenvolve o seu pensamento em forma discursiva.

A Alma está em relação com o Intelecto assim como este está em relação com o Uno. Na base de tudo está sempre a contemplação. Por conseguinte, logramos dizer que a Alma é o lógos do Intelecto ou seu resplendor – phôs ek phôtós [En. IV, 3, 17, 13-14].

Desejoso de explicar as hipóstases, Plotino, uma vez mais, vale-se de comparações: se o Uno é visto como a fonte primigênia da luz, o Intelecto, que vem após ele e que é inteiramente luminoso, pode ser comparado com o sol, e a Alma, que recebe a luz do Intelecto, é comparável à lua [Cf. En. V, 6, 4, 14-16]. A partir dessa imagem, o licopolitano assevera que a Alma, em permanente inquietude [En. III, 7, 11,20-21], aspira a algo que lhe falta, a algo transcendente, ou seja, ao Intelecto o qual está plenamente satisfeito consigo, contemplando em si mesmo os inteligíveis. Dessarte, ela se apressa em organizar o universo [Cf. En. IV, 7, 13,2-8], voltando-se, pela theôría, à segunda hipóstase.

A Alma representa a terceira e última das hipóstases, o terceiro círculo luminoso além do qual só existe a obscuridade da matéria do mundo sensível [Cf. En. V, 1, 10, 1-4].

O significado especulativo da terceira hipóstase cifra-se em ser intermediária ou mediadora entre o mundo inteligível e o mundo sensível, entre o mundo superior e o mundo inferior. Estabelece-se, assim, um vínculo claro entre o Uno e o mundo material73. Aqui terminam as hipóstases do mundo inteligível e incorporeo. O Uno, o Noûs e a Alma universal constituem a chamada trindade ou tríade plotiniana a qual é de todo em todo diversa da Trindade cristã74. Na tríade do licopolitano, não se pode falar em conumeração, aplicando-lhe nomes cardinais: um, dois, três. Isso vale para a Trindade cristã. Em Plotino, ao contrário, há subnumeração, ou seja, deve empregar-se a série de nomes ordinais: primeiro (Uno), segundo (Noûs), terceiro (Alma do mundo). Com isso, fica patente o subordinacionismo, o qual não cabe à ideia do Deus uno e trino revelado por Cristo, conforme Mt   28, 19.

Pelo que vimos, cada nível da realidade é a imagem do nível imediatamente superior, e, ao mesmo tempo, o modelo do nível seguinte. O Noûs é a imagem do Uno, a Alma é a imagem do Noûs, o mundo sensível é a imagem do mundo inteligível.