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Noûs

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Insistindo em que todas as coisas provêm de um princípio único e último, Plotino   tornou difícil a sua explicação: como a realidade, em toda a sua diversidade, pode derivar de um só princípio não-composto?

O Uno primigênio (Ur-Eine) (hén) produziu o Noûs e o múltiplo por emanação (apórroia)” . Nas Enéadas, encontramos também as palavras éklampsis e éklapsis, do verbo eklámpein, traduzido, às vezes, por emanar. Porém, stricto sensu, significa “espargir luz”, “irradiar luminosidade”. Plotino emprega esses termos em sentido figurativo, como também o faz com o verbo aporrem e o substantivo próodos. Logo, não se pode dizer que Plotino é emanatista [emanatismo] em sentido panteísta. Claramente ele afirma que “a causa não é a mesma coisa que o causado” [En. V. 9, 6].

O autor das Enéadas faz clara distinção entre originante e originado, entre causa e efeito [v. inalterado]. Por essa razão, concordamos com Giovanni Reale  , quando diz: “Orbene, di ‘emanazione’ Plotino parla solo nelle sue immagini, mentre la sua dottrina ne è la negazione”. Concordamos também com o mesmo autor, quando justifica a sua asserção: a) as hipóstases sucessivas (isto é, as instâncias mediadoras) do Uno não são de fato um fluxo da substância do Uno; b) em consequência, não são a substância do Uno despotenciada; c) não derivam do Uno por mera necessidade natural (física  ).

Por que se dá a emanação? Responde Plotino: “Ele (Uno) é perfeito, porque nada procura, de nada tem necessidade; por isso, pelo assim dizer, ele desborda, e a sua superabundância gera outra coisa” [En. V, 2, 1,8-10]. Nada perde de si, nada acrescenta a si, nem deseja aumentar-se [En. VI, 9, 5, 38]. A produção do Uno é livre, porquanto ninguém está acima dele para obrigá-lo a agir. É também necessária, porque ele é a própria necessidade e a lei de tudo o mais. Nada produz por acaso (tychei) [En. VI, 8, 10, 8s], mas é causa (aitía) que organizou tudo racionalmente [En. VI, 8, 10]. Não se trata de causalidade mecanicista, no sentido de depauperar ou tornar melhor o Uno, por ser perfeitíssimo.

O Uno, dir-se-ia, sente-se “obrigado” a comunicar a sua bondade – bonum est diffusivum sui – e a fazer as coisas participes de sua perfeição. “Esse surgimento é, num sentido, necessário, porque não pode conceber-se que não ocorra ou que ocorra de outro modo. Porém, é totalmente espontâneo, no sentido de que o Uno não está sujeito a compulsão externa nem interna”. Por isso a emanação plotiniana não pode ser interpretada como cego automatismo. Ela é de fato resultado de uma iniciativa pessoal. A errônea interpretação das metáforas empregadas pelo licopolitano — difusão da luz, do perfume, do calor, etc. em face da dificuldade de explicar logicamente o processo da emanação, conduziu à ideia de que Plotino é panteísta.

Plotino intuiu a emanatio [emanação] como explicação última da origem do múltiplo.

Nenhuma necessidade (carência), mas a perfeição e a bondade constituem a causa da emanação. Com isso fica excluída a ideia de emanação automática que as metáforas poderiam sugerir [método de ensino].

O filósofo licopolitano compara o Uno a) com o fogo de que emana calor; com a neve que espalha o frio; com a substância odorifera que exala o perfume; com o ser vivo que gera outros seres vivos [En. V, 1, 6]; b) com a luz que irradia de uma fonte luminosa, sem se esgotar jamais [En. IV, 3, 17]; c) com a fonte de água inexaurível, formadora de rios [En. III, 8, 10; d) com círculos concêntricos. [Na famosa visão da Santíssima Trindade, descrita por DANTE  , encontramos uma imagem idêntica: “Ne la profonda e chiara sussistenza / de l’alto lume parvermi tre giri / di tre colori e d’una contenenza; / e l’un da l’altro come iri da iri / parea reflesso, e ‘l terzo parea foco / che quinci e quindi igualmente si spiri” (Paradiso, canto 33, 115-120).]

Do Uno provém o Noûs, o qual, pois, é posterior ao originante, mas anterior àquilo que vem depois dele, isto é, a Alma.

Para não ser entendido erroneamente, convém aprofundar o sentido de emanatio. Em Plotino, a substância do Uno não é idêntica à dos entes dele provenientes. O Noûs constitui uma modalidade ontológica distinta, isto é, uma outra hipóstase. “O Uno, como fonte dos melhores bens, não sofre diminuição” [En. VI, 9, 5, 37]. Por outra, ao gerar o Noûs, denominado hèn pollá, ele é imagem eterna do Uno [“Parler de l’Un comme donnant naissance à l’intellect divin serait fallacieux si nous allions imaginer ceci comme s’inscrivant dans le cadre spacio-temporel (...)” (O’MEARA  , Dominic, Une introduction aux Ennéades (Fribourg Suisse, 1992), p. 86).]. O Intelecto existe desde sempre como expressão eterna do Uno. Contemplando o Uno, o Noûs gera em si mesmo o mundo das ideias (kósmos noêtós). Por essa razão, o Noûs é cognoscente e conhecido, contemplante e contemplado, sujeito e objeto; é vida infinita, na dimensão imaterial e atemporal. Ele não precisa procurar fora de si o conteúdo do seu pensamento, por já encontrá-lo em si mesmo. E plenamente feliz [Em outras palavras, no Noûs o pensar, o pensante e o pensado são idênticos.]. Por que o Noûs deve volver-se (epistréphein) ao Uno? [Cf. En. V, 1,6, 17] Por ser ele princípio e causa final. “Ele é a realidade da qual todas as coisas dependem, a qual todas desejam como princípio e da qual têm necessidade” [En. I, 8, 2, 3-4]. O volver-se, o retornar ao Uno confere ao Noûs o estatuto de intelecto e de ser. Em outras palavras, do Uno ele recebe a sua determinação. E que, no início, o Noûs “não era ainda um intelecto que contemplava o Uno; era um olhar (contemplar) sem inteligência” [v. Intellect]. Por meio dessa contemplação, no Noûs constitui-se o universo inteligível, o kósmos noêtós, os inteligíveis simplesmente. A relação do Noûs (e o mesmo vale depois para a Alma) com o Uno não consiste tanto em ter provindo dele, mas em voltar-se a ele, em converter-se a ele.

Contrariamente a Platão  , os inteligíveis encontram-se no Intelecto e não num mundo à parte. E mais. Há perfeita coincidência entre o Noûs e o inteligível [Cf. En. VI, 7, 3, 21-22], entre o ato de conhecimento e o objeto de conhecimento. Estamos, aqui, ante o máximo esplendor da verdade, ante a plena coincidência entre o sujeito e o objeto [O Noûs conhece os inteligíveis como conhece a si mesmo. Não há intermediário. “L’erreur ne peut donc se glisser. Rien de plus vrai que la vérité même. Or. le Noûs est la vérité” (ARNOU, René, Le désir de Dieu dans la philosophie de Platin, 2. ed. (Rome, 1967), p. 29).]. [ULLMANN  ]