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quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Amor (eros, philia)

A investigação platônica do conceito de amor é uma discussão objetiva sobre diferentes interpretações desse conceito. Isso fornece uma amplidão às concepções de amor tratadas, o que proporciona aos textos de Platão   uma atualidade atemporal, ainda que seu ponto de partida, a pederastia habitual em Atenas — que a seguir não será expressamente tematizada (cf., de resto, a exposição de Platão em Banq. 182a-185c) —, e a concentração do amor na ideia do belo ou do bem pareçam inicialmente estranhos.

I. O primeiro tratamento detalhado do amor por Platão ocorre no diálogo Lísis, uma obra relativamente inicial (quanto à datação Guthrie   1975, p. 134 s.). No entanto, sua discussão dos conceitos de philia e philon   não chega a uma elucidação concludente, como o próprio Platão admite (Lísis 222e-223a). Mas já se tornam nítidas as tendências salientadas no Banquete   de interpretar o amor não como relação bilateral equilibrada (Lísis 212a-213d), mas como empenho por uma perfeição ainda não alcançada, como o fazem de modo especial os filósofos (Lísis 217a-218c). Todo empenho desse tipo deixa-se remeter, em última análise, a um objetivo — o “realmente amado” (philon to onti) (Lísis 219d-220b; KUHN   1975, p. 44 s.). O fato de o diálogo terminar numa aporia não deveria nos enganar quanto a esses conspícuos paralelos. Ao contrário, a última aporia do Lísis, que no Banquete não causa dificuldade alguma (Banq. 205e), deverá ser vista como literariamente intencionada (diferentemente de, por exemplo, Guthrie   1975, p. 143 s.): o diálogo aponta dificuldades de concepções populares e uma tentativa de solução possível, mas permanece formalmente aberto (Price 1989, p. 12-14).

II. Concepções de amor no Banquete: o próprio Banquete oferece uma série de interpretações diferentes do conceito de “amor”, que representam interesses legítimos do debate sobre esse conceito. Se Platão aqui não mais tematiza o amor sob o conceito de philia, como no Lísis, mas sob o de eros, ele trata o amor ainda mais claramente como uma busca desejosa (cf. Fedro   237ds.) em vez de como uma amizade entre iguais. Outra novidade é que o amor é tratado não só com o auxílio de seus efeitos entre as pessoas, mas como divindade cujo caráter explica a essência do amor humano. Assim, o primeiro interlocutor, com a idade e o alto status do deus Eros, esclarece por que este conduz a vida humana para sua realização virtuosa, em que os amantes estão dispostos a morrer um pelo outro (Banq. 178a-180b). O interlocutor seguinte, Pausânias, que como amante de Agatão é um representante do homoerotismo difundido em Atenas, diferencia essa afirmação e explica que há entre os homens um Eros louvável e um moralmente mau, que se voltam para a alma virtuosa ou para o corpo (Banq. 183d-e). Erixímaco salienta a eficácia desses dois erotes como princípios básicos da cosmologia e da condução da vida inteira (188d). — Por outro lado, o comediógrafo Aristófanes remete o amor inter-humano não à divindade, mas à divisão dos seres humanos. Cada dois destes teriam originalmente formado uma unidade em que a parte anterior e a posterior eram, cada uma, uma pessoa com rosto próprio e órgão sexual próprio. Depois que Zeus separou essa ligação por causa da soberba dos homens, cada parte assim arrancada procura pela contraparte separada (Banq. 189d-193c). — Depois desse divertido intermédio, o trágico Agatão reconduz ao tema do Eros como divindade, ao descrever o amor como o mais jovem, mais belo e melhor deus, ao qual são atribuídas em máxima medida as virtudes da justiça, da moderação (sophrosyne), da coragem e da sabedoria (Banq. 194e-197e).

III. O discurso de Sócrates   ou de Diotima: esse elogio do Eros toma-se ensejo para o próprio discurso de Sócrates sobre o amor, que se inicia com uma discussão crítica com Agatão e termina numa reprodução das afirmações da vidente Diotima sobre o amor. Aqui, declarações essenciais dos oradores precedentes são debatidas e relativizadas ou explicadas com base na nova teoria. — Sócrates ressalta que não pretende dizer um discurso de louvor ao amor, mas a verdade sobre ele (Banq. 198c-199b; cf. Fedro 247c); seus interlocutores, especialmente Agatão, são postos num papel semelhante aos dos sofistas nos primeiros diálogos, cujas exposições autoconfiantes são refutadas por Sócrates. No caso de Agatão, Sócrates mostra pelo questionamento introdutório que o amor sempre se volta para alguma coisa que ele ainda não tem, de modo que não pode estar certa a visão de que o próprio amor já é perfeito; ele é, antes, uma aspiração ao belo, pois ele próprio ainda não é belo (Banq. 199b-201c). — As posteriores asserções de Diotima também fazem lembrar o Lísis: o eros não é belo, tampouco feio. Como não é belo, ele não pode ser um deus, mas é um daimon, que aproxima dos homens os bens dos deuses. Isso é explicado pela célebre genealogia segundo a qual Eros é um filho da pobreza (penia) e de Poros, a personificação do caminho ou do meio de alcançar alguma coisa. Como ele foi gerado por ocasião do nascimento de Afrodite, Eros está sempre em busca do belo, mas ele próprio permanece terno, embora também feio e imperfeito (Banq. 203a-e). Dessa maneira, ele se torna o modelo do filósofo, que se encontra continuamente no caminho da sabedoria, pois ele próprio não a possui — como os deuses —, mas já reconheceu seu valor (ver FILOSOFIA), o que os ignorantes (amatheis) nunca conseguem (Banq. 204a-b; cf. Fedro 248d). — De modo geral, o amor é a aspiração de cada pessoa à sua felicidade (eudaimonia) ou ao bem (agathon, Banq. 204e-205a), mas no sentido estrito só a vida orientada por um objetivo final imortal, não apenas por bens individuais como riqueza ou saúde e força físicas, pode ser chamada amor (Banq. 205d-106b). Aqui, formalmente a beleza (kallos) é objeto do amor, pois só algo belo estimula a produção de coisas boas. Entre estas se incluem tanto a procriação (tokos), que é estimulada pela beleza física   e assegura a eternidade da espécie humana, como a conquista de virtudes morais e políticas, que contribui para a beleza perpétua de nossa alma (Banq. 206c-209e). No entanto, o amor se cumpre apenas na visão noética do perfeitamente belo, a qual representa “um saber totalmente determinado” (mia tis episteme, Banq. 210d) da ideia perfeita, imutável e imperdível do belo (Banq. 210c-211b). Essa visão, por assim dizer, mística só pode ser alcançada por uma ascensão gradual pelos diferentes estágios da beleza imperfeita (Banq. 210a-c). — Esse desenvolvimento gradual também mostra como os méritos do amor louvados pelos oradores antes de Sócrates podem ser sistematicamente avaliados: o amor não é, como opinou Aristófanes, dirigido a uma metade do próprio si-mesmo (Banq. 205d-e), mas à beleza como um todo, enquanto os feitos heroicos descritos por Fedro e por outros são uma consequência do amor pelas coisas belas de nosso aperfeiçoamento (Banq. 208d). No Banquete, o louvor de Alcibíades a Sócrates, marcado por incompreensão, mostra exemplarmente como quem tem o acesso a essa beleza é estranho ao seu entorno (Banq. 215a-222b).

IV. Fedro e Leis: a concepção do Banquete não foi a última palavra sobre a temática do amor, pois ela é complementada em alguns aspectos especialmente no Fedro e nas Leis. O ponto alto da exposição no Fedro, segundo o qual muitas formas de amor são antes tipos de loucura (mania), é formado pela descrição de dois amantes que se apoiam mutuamente no caminho do bem, depois que o anseio irracional, transbordante, pelo amado — simbolizado por um dos dois cavalos da alma — foi contido pela concentração da alma na verdadeira beleza (Fedro 253c-256e; para uma análise detalhada do amor no Fedro, cf. Price 1989, p. 55-102). — Nas Leis há um esclarecimento adicional do conceito de amor. Ali Platão distingue três tipos de amor, um referente ao semelhante, outro ao contraposto, ao que (ainda) falta no amante, e um tipo que une os dois. Esse amor pode se voltar tanto para um bem físico, momentaneamente presente, como para a virtude da alma. Apenas o amor virtuoso deveria, se tanto, ser permitido pela lei (Leis 837a-c). Que essa espécie de amor é desejada por Deus é deduzido do fato de que os demônios, entre os quais certamente também se deve incluir o Eros do Banquete, foram designados pelo filantropo (philanthropos) Deus da criação para a orientação e o melhoramento dos homens (Leis 713c-d). Portanto, o cuidado divino, como amor descendente, constitui uma contraparte ao Eros humanos ascendente (Kuhn 1975, p. 51-55).

V. Plotino   e Proclo   (Tornau 2005; 2006): na tradição platônica, especialmente Plotino atribuiu uma posição especial ao conceito, ao descrever como amor a reorientação do homem pelo um ou pelo bem (cf. Enéadas III.5[50]): todo ente se toma objeto da aspiração erótica, na medida em que lhe cabe beleza pela participação no Um ou no bem (Enéadas VI.7[38].21.11-17). No entanto, parece paradoxal a suposição de que essa aspiração possa se realizar. A existência de uma aspiração pressupõe que a coisa buscada ainda não é possuída. A resposta de Plotino é que ele entende o ato de amor concluído como uma não analisável união do amante com o um ou bem, em que a objetividade do objeto do amor é suprimida e o amor se torna seu próprio objeto (Enéadas VI.8[39] 15.1-8). Em última análise, esse Eros atesta o anseio do homem pelo um ou pelo bem, e apenas nesse estágio, não já no do espírito, o amor humano encontra sua realização (Enéadas VI.7[38].34s.). — No neoplatonismo posterior essa posição especial do amor passa para segundo plano, como se vê exemplarmente em Proclo: aqui a referência amorosa do ente à beleza da divindade é secundária em relação à crente confiança (pistis) em sua bondade, que constitui o aspecto (monê) duradouro da divindade entendida triadicamente e é, ao mesmo tempo, a origem axiomática de todo juízo de valor humano. Como esse bem é, em si, inalcançável, em última análise é apenas a teurgia, em vez do amor, que leva à perfeição do homem (Theologia platônica 1,22-25).

VI. O conceito de amor cristão e agostiniano (Tornau 2005): a teoria do amor de Platão exerceu efeito mais significativo por meio da recepção cristã, em que Agostinho apresentou a concepção mais influente e elaborada. Os elementos platônicos aqui foram especialmente a tese de que todo amor se dirige, em última análise, a um objetivo perfeito — com Deus entrando no lugar do bem platônico ou do um plotiniano —, assim como a suposição de que o homem encontra esse objetivo em seu próprio espírito, bastando que ele o compreenda corretamente (De trinitate 8, 9-11). A diferença entre amor bíblico (agape) e eros platônico também é enfatizada:

1. Ao contrário de Plotino, Agostinho diferencia nitidamente o amante e Deus, seu objeto último (In I Ioannis 9, 9). 2. O verdadeiro amor é sempre também amor ao próximo, pois não se pode amar só a Deus, cujo amor tem um homem como objeto concreto (De trinitate 8, 12; In Joannis 9, 10 s.). Com esses ajustes, a teoria do amor de Agostinho com características platônicas inspirou o rico debate em tomo do amor na Idade Média (Abelardo, Bernardo de Claraval  , Ricardo de São Vítor, Boaventura  , Tomás de Aquino  , Meister Eckhart   entre outros). [SHÄFER]