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huios tou anthropon

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

VIDE: HUIOS TOU THEOU; FILHO DE DEUS; FILHO DO HOMEM

EVANGELHO DE JESUS: Evangelhos   Filho do homem - CITAÇÕES NOS EVANGELHOS
Evangelho de João
Joaquim Carreira das Neves: ESCRITOS DE SÃO JOÃO

A expressão "Filho do Homem" é das mais discutidas entre os exegetas: que significa? Foi o Jesus histórico que a aplicou a si mesmo ou a comunidade que a aplicou a Jesus? Aparece 80 vezes nos evangelhos, das quais 13 vezes em João, sempre na boca de Jesus e como locução de auto-identificação. Alguns exegetas defendem que a expressão é uma criação das igrejas primitivas, mas esta tese parece ser inviável porque a expressão só aparece nos evangelhos e não no resto da literatura do NT, ao contrário dos outros títulos: Messias, Filho de Deus, Senhor. Mais ainda, a expressão nunca é definida nem por Jesus nem pelos evangelistas, e nunca é sugerida pelos discípulos à pergunta de Jesus sobre "quem dizem as pessoas que eu sou?" (Mc   8, 27 e par.).

A tradução grega ho huios tou anthropou, com dois artigos definidos, é estranha e nunca aparece na literatura clássica grega. E, portanto, uma expressão tipicamente hebraica e aramaica, que aparece pela primeira vez no AT com um sentido teológico e "apocalíptico" em Dn 7, 13 [1] e muito desenvolvida na apocalipse - literatura apocalíptica, sobretudo no Enoque - 1 Henoch 37-71.

Quanto ao seu significado no Evangelho de João - quarto evangelho — como acontece também, mas não de maneira total com os sinópticos -, a expressão tem a ver: 1) com a função judicial de Jesus (5, 27: "e deu-lhe o poder de fazer o julgamento, porque ele é Filho do Homem"), 2) com a função sofredora da cruz, mas transfigurada em glória através da metáfora tipicamente joanica: "levantar ao Alto" (8, 28: "Quando tiverdes levantado ao alto o Filho do Homem, então ficareis a saber que eu sou o que sou e que nada faço por mim mesmo, mas falo destas coisas tal como o Pai me ensinou"; cf. 3, 14; 12, 32. 34) e 3) com a função de mediador-revelador de Deus entre o céu e a terra (1, 51: "Em verdade, em verdade vos digo: vereis o Céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo por meio do Filho do Homem"; 3,13: "Pois ninguém subiu ao Céu a não ser aquele que desceu do Céu, o Filho do Homem"; 6, 27; 6, 62: "Isto escandaliza-vos? E se virdes o Filho do Homem subir para onde estava antes?").

Estas três vertentes correspondem-se umas às outras, sobretudo porque há uma grande cumplicidade teológica entre a morte e a glorificação. A cruz, em João, é o sinal maior da glória de Jesus e o clímax da sua revelação e mediação entre Deus e a humanidade. A expressão "Filho do Homem", determina, pois, no quarto evangelho, de modo mais pertinente do que nos sinópticos, toda a cristologia.

Dito isto, há que referir alguns aspectos mais concretos e cristológicos, sobre os quais se tem escrito imenso.

Como vimos, a expressão aparece a primeira vez com sentido apocalíptico no célebre texto de Dn 7,13-14:"Contemplando sempre a visão noturna, vi aproximar-se, sobre as nuvens do céu, um ser semelhante a um filho de homem. Avançou até ao Ancião, diante do qual o conduziram. Foram-lhe dadas as soberanias, a glória e a realeza. Todos os povos, todas as nações e as gentes de todas as línguas o serviram. O seu império é um império eterno que não passará jamais, e o seu reino nunca será destruído." Esta figura apocalíptica tem uma natureza própria, é diferente do "Ancião"-Deus, mas colocam-no "diante do Ancião", e é nesta pose de "lugar e espaço celestial" que recebe "as soberanias, a glória e a realeza", e "todos os povos, nações e gentes o servem, de tal modo que o seu império é eterno", em contraste com os quatro impérios do mal, saídos do abismo dos mares de 7, 2-8. Este contraste de impérios maus com o "império" do Filho do Homem, em literatura apocalíptica, significa que o Filho do Homem vai constituir o último império da escatologia esperada pelos judeus daquele tempo.

Mas a narrativa do capítulo sétimo de Daniel passa a apresentar a natureza do quarto animal-império que "proferirá insultos contra o Altíssimo, perseguirá os santos do Altíssimo, pensará em mudar os tempos sagrados e a religião" (v.25). Os autores concluem que se trata do rei Antíoco IV (175-164 a. C.; cf. l Mac 1, 41-64), que determinou acabar com a religião judaica e substituí-la pela cultura grega. Em seguida, o narrador passa da "pessoa", no singular, do "Filho do Homem" de 7, 13, para as "pessoas", no plural, dos "santos do Altíssimo", nos vv. 18. 22. 25. 27, "a quem serão devolvidos a realeza, o império e a grandeza de todos os reinos, situados sob os céus. O seu reino é eterno e todas as soberanias lhe prestarão submissão de obediência" (v. 27; cf. vv. 18.22). Há, pois, uma fusão entre o singular e o plural. A figura tipológica do messianismo celestial e apocalíptico do "Filho do Homem" é desmitificada e historicizada nos santos judeus do Altíssimo que resistiam às investidas do pagão Antíoco IV, que a si mesmo se intitulou de "Epifanes" (Epifâneo), isto é,"manifestação" de Deus, em oposição ao Deus Santo dos judeus. O capítulo sétimo de Daniel acaba por ser um libelo político de esperança para os resistentes judeus que não se deixaram levar pela política pagã do rei. Assim se explica o inciso:"Os santos viverão sob a sua alçada, apenas durante um determinado espaço de tempo. Mas o julgamento continuará e tirar-lhe-ão o domínio, para o suprimir e aniquilar definitivamente" (vv. 25b-26).

Se Jesus — e só ele — aplica a si mesmo esta metáfora, muito difundida naquele tempo entre os judeus de pensar apocalíptico, é porque a metáfora tem grandeza "divina", mistério "divino", essência "divina", salvação "divina". Jesus nunca a explica, mas ela é bem conhecida [2]

A pregação de Jesus, nos Sinópticos, gira sempre à volta do "Reino de Deus", que nos conduz ao "reinado, grandeza e soberania" do Filho do Homem. A expressão é, de fato, ambivalente, porque tanto nos pode conduzir para um reino/reinado/soberania "celestial" (Dn 7,13) como para um reino/reinado/soberania "terrestre", já que não há Filho do Homem, singular, sem os "santos do Altíssimo", plural, que lutam contra as forças "pagãs". Desta maneira, em nosso entender, Jesus como "Filho do Homem" aparece juntamente com os seus discípulos a lutar pelo mundo semiótico do messianismo ou da apocalíptica escatológica.

Realmente, o Jesus joanino — como também o sinóptico — não aparece como Filho do Homem envolvido em roupagens imagéticas próprias da apocalíptica dos livros de Enoque - Enoc, Baruc, Jubileus. Sempre que a figura do Filho do Homem aparece é para descrever a escatologia realizada típica do quarto evangelho, embora em 5, 28-29 se ressalve a escatologia futurista.

Tem havido discrepâncias entre os estudiosos sobre a natureza funcional deste Filho do Homem em João, embora as treze passagens, como vimos, possam distribuir-se em três vertentes principais. Uma das questões tem a ver com o verbo hypsothenai, que significa "levantar/elevar", à maneira da serpente de Moisés no deserto. Aparece três vezes (3, 14; 8, 28 e 12, 34). Há quem veja nesta "ascensão" a partida de Jesus para o Pai, mas o significado primeiro é apenas o da metáfora relacionada com o "levantar da serpente", ou seja, o "levantar na Cruz" com tudo o que tal imagem significa, no quarto evangelho, de salvação e de congregação do povo de Deus através desse sinal messiânico e escatológico. Nos sinópticos nunca o Filho do Homem aparece relacionado com a imagem da serpente. Este pormenor, aliado a outras realidades, leva alguns autores a concluírem que a cristologia do Filho do Homem, subjacente em João, é mais antiga, neste particular, do que a dos Sinópticos. E o caso, por exemplo de Jo 5, 27, onde a expressão aparece sem artigo definido: "e deu-lhe o poder de fazer o julgamento porque ele é Filho do Homem" [3]. O fato da expressão aparecer também juntamente com estoutra "Filho de Deus" (88 vezes) e "Filho" (20 vezes) (cf. por exemplo em 1, 49. 51 e 3,14-16) leva a concluir que estas duas, muito presentes na literatura do NT, são mais tardias que a "Filho do Homem", como resultado normal da fé cristológica. E interessante notar que os primeiros discípulos apresentam Jesus como "Rabi" (1, 38), "Messias" (1, 41), "Aquele sobre quem escreveram Moisés, na Lei, e os Profetas" (1, 45), "Filho de Deus" e "Rei de Israel" (1, 49), mas Jesus termina a cena apresentando-se como "Filho do Homem" (1, 51). Trata-se, pois, duma expressão que não foi elaborada pela cristologia da fé das comunidades. Note-se também a diferença quando se afirma que o Pai envia o "Filho" (por ex. em 3,16), mas nunca se diz que o Pai envia o "Filho do Homem". Dependente desta interpretação, apresenta-se o problema de saber se o Filho do Homem em João coincide com o Verbo - Logos joanino preexistente que desce do Alto à terra. Na realidade, só o logion de 3, 13 ("Pois ninguém subiu ao Céu a não ser aquele que desceu do Céu") tem este significado.


Observações

[1Cf. Fitzmyer J. A., "Another View of the ‘Son of Man’ Debate" JSNT 4 (1979) 56-68. Em Ezequiel aparece umas 9O vezes para indicar Ezequiel como homem e profeta mortal em contraste com o mensageiro celeste.

[2O texto de Dan 7,13ss presta-se, naturalmente, a muitas interpretações, até porque o próprio texto mistura o singular com o plural, sinal claro de glossas intertextuais dentro do mesmo texto. Cf. Caey, M., Son of Man. The Influence and Interpretation of Daniel 7 (SPCK, London 1979).

[3Cf. Borsch, F., The Son of Man in Myth and History (Westminster, Philadelphia); Smalley, S. S., "The Johannine Son of Man Sayings", NTS 15 (1968-69) 278-301.