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rasha

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

No caminho da iniquidade não tardamos a encontrar o príncipe das trevas. O Saltério constitui-lhe um documento de identidade temível, que comporta nada menos de cento e doze nomes, sobrenomes, títulos e qualidades. Essencialmente ele é o rasha, o que não pode encarar o julgamento de Elohims, o perverso, o criminoso. Não um homem particular, mas a entidade do mal, sob todas as suas faces. O salmista o descreve como sendo o Adão do mal, o inimigo, o mentiroso, o insensato, o poderoso, o touro de Bashân, o homem de violência, de astúcia, de iniquidade, o devorador do povo, o traidor, o pérfido, o filho do bárbaro, o homem de sangue, o estúpido, o aproveitador, o orgulhoso, o olho arrogante, o ladrão, o fanfarrão, o assassino, o saciado da terra, o gabarola, o vaidoso, o prostituído, o terrível, o pecador, o acerbo, o ávido, o maligno, o portador de infâmia, o forjador da desordem, o operário da iniquidade, o caçador de armadilha, o lançador de chamas, o guerreiro, o zombador, a língua pérfida, o espreitador de alma, o blasfemador, o rei da terra, o tortuoso, o exterminador, o carrasco, o revoltado, o vingativo, o adversário, o louco, o poderoso deste mundo, o golpeado, a herança do destruidor. Ele é a alma e o centro da assembleia dos violentos, dos horríveis, dos olhos agressivos, do povo insensato, do conselho dos zombadores, dos astutos, dos malignos, do bando dos malfeitores, dos destruidores. É o opulento, o rico, o espoliador, o obreiro do crime, o parvo de coração, o criminoso da terra, o feroz, o cão, o forjador do nada, e assim por diante. É o inimigo da justiça, o esquecido de Elohims, o opressor, o adversário da paz. É o detentor do cetro do mal, o acusador. O que tem por nome hebraico: Satã.

Seu nome define bem suas obras. O Saltério as descreve com minúcia. O pai do nada encarna uma inadequação, um vazio, e suas obras se assemelham a ele. Cada uma de suas palavras consuma uma mentira, cada um de seus gestos, uma violência. Todo o Saltério não seria suficiente para descrever seus atos: ele é apresentado, desde o primeiro salmo  , como um argueiro que o sopro fustiga; da gluma, tem a leveza, a instabilidade, a secura e a esterilidade. Sem raízes e sem peso, encerra-se no horizonte da temporalidade do qual se torna cativo. Toda a sua ciência se resume na negação de YHWH Adonai. "Elohims não é", eis a fonte da insatisfação de seu espírito, da insaciabilidade de sua cobiça, de sua angústia. Criatura ferida, nada pode preenchê-lo. Sua verdade deve assim coincidir com inadequação que encarna. Ele recusa a resignação, como impossível e mentirosa, no caminho da temporalidade. Sua mais alta lucidez é ver-se condenado a viver e a morrer na ansiedade e na escuridão. Vive entre quatro paredes. Deve recusar a alegria de um ilusório repouso que seu horizonte maldito não lhe pode permitir obter.

Ele está em sua verdade ao optar pelo mundo, e sua escolha lhe retira todo repouso. O salmista nos faz ver o esgar de sua boca, de seus lábios, o movimento de sua língua que produz ilusão e tormento. Ele nega e calunia, mente e insinua; o roubo é sua justiça; a torpeza seu orgulho; seu gozo é cativo de seus horizontes; não é mais que zombaria e ranger de dentes. Insaciável, acumula para gozar e não pode parar de acumular: seu tormento se torna seu gozo, seu cativeiro sua liberdade, suas trevas sua luz; sua morte a medida de toda vida. Sua vontade de potência se desfralda, sem regra nem medida, no horizonte que o escraviza. Mas em suas mãos o poder e a justiça se tornam instrumentos de opressão, de escravização. Ele desnatura a justiça, declara falso o que é verdadeiro, verdadeira a mentira. E para si mesmo sua própria medida e projeta sobre tudo à sua volta a sombra que o aprisiona.

Encarnação do mal, cujas obras se multiplicam como uma cabeleira negra sobre os seres que ele seduz e subjuga, o rasha se depara com o único limite capaz de negá-lo: o inocente lhe revela o intemporal que ele recusa e cuja realidade transtorna seus horizontes cegos.

E o Saltério se enche do ruido de sua guerra. Vemo-lo inteiramente engajado na caça ao homem, espreitando seu inimigo, surpreendendo-o no mais inesperado do caminho. Não há dúvida que não invente para tentar subjugá-lo e, tão logo possa, tortura que não inflija.

Em volta do criminoso vemos agitarem-se as nações que refletem sua imagem. Elas vivem subjugadas ao poder das trevas, hostis à luz da inocência. Edôm, Moab, Ishmaël, Ammôn, Amalec, os filhos de Lot, os filisteus, Rahab, Babel, Tyr, Méshekh e Qédar, onde a exegese hebraica reencontrava os rostos dos impérios deste mundo, desencadeiam-se, atroam, ameaçam e mortificam no caminho em que Misraîms, o Egito, "o país da dupla angústia", parece encarnar a terra original do revoltado. Casa da escravidão, lugar dos cativeiros de José e de Israel, corpo golpeado por todos os flagelos, prisão de que é preciso sair para chegar à liberdade dos filhos de YHWH Adonai, reino de Faraó, o Egito, mais do que um lugar determinado, representa no Saltério o lugar simbólico de todos os exílios.

Os lugares estreitos, fechados, obscuros, o lodo, a armadilha, as águas devastadoras, os animais ferozes, a morte fornecem ao salmista as inesgotáveis imagens que lhe permitem descrever o caminho do criminoso. Todos os seus gestos são percebidos com realismo pelo olho contemplativo que não cessa de observá-lo: a mão que golpeia e que mata, o braço que se agita, o pé que esmaga, o calcanhar que foge, o sangue que escorre; o cortejo das dores - as mandíbulas que rangem - e suas armas, a espada, o arco que grita sob o braço que o verga, a flecha que parte, assobia e mata à distância, o tumulto dos carros, a ameaça das altas torres, dos redutos fortificados, os berros furiosos, o galope dos cavalos, os estertores de agonia no crepúsculo dos combates, o butim disputado num cenário de montanhas, nas neves da noite, o olhar inflamado de ódio... Um grito domina o tumulto: "Elohims não é." E, nessa guerra fantástica, os réprobos sempre têm diante de si apenas um único inimigo, nu, desarmado, gritando que não há nenhum amparo na violência, sangrando e voltado apenas para YHWH Adonai. Lemos claramente nos Salmos: não há outra guerra senão a do revoltado contra o inocente, nem outra derrota que a do revoltado diante do inocente. Tal é a lei implacável do julgamento de Elohims.

O perverso, o criminoso, não tem outra escolha senão renegar-se ou optar pelo crime que a fratura do mundo permite. Não um crime qualquer. O criminoso não almeja matar qualquer um ou cometer o vulgar suicídio. O pensamento do salmista não cessa de esclarecer o essencial ao afirmar que existe apenas um único assassinato, gratuito e perfeito, na terrível fronteira da morte e da vida: o do inocente. Preso à sua angústia, sujeitado a seus limites, a única nostalgia do criminoso é o assassinato para sempre impossível: o deicídio.

O revoltado tenta saciar no sangue do Justo seu ressentimento de não poder matar Deus.

A estrada do príncipe das trevas conduz apenas ao nada da morte. Ele existe, vive, mata no ilusório. Seu caminho é escuridão: faça o que fizer, não pode chegar à obra que perdura. A seu poder, entretanto, parece não haver nenhum obstáculo: para ele, o inocente, a bem dizer, não existe; a seu ódio, este nada opõe; com frequência oferece a garganta à sua faca, não disputando com ele um reino do qual tem horror. O inocente pertence a um outro mundo; e, diante desse ser descarnado, desarmado, perdido num impenetrável sonho, o criminoso deve se inclinar, como trevas que se apagam diante da luz. Se o inocente é com frequência morto, o revoltado é sempre vencido. Pois a linha inflexível que os diferencia é aquela traçada pela justiça de Elohims.