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Pratityasamutpada

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Filosofia
Sérgio Fernandes - Sérgio L. de C. Fernandes  : FILOSOFIA E CONSCIÊNCIA
A aparente continuidade do tempo serve ao que, no budismo, chama-se a Cadeia de Originação Dependente: o "passado" (avijja, ignorância; e sankhara, vontade, apetição, tendências da mente, o produto e o processo de "arranjo" ou conformação); o "futuro" (bhava, vir-a-ser; jati, (re)nascimento; e jaramarana, decadência e morte); e o "presente" (vinnana - Sânscrito: vijnana —, consciência intencional; nama, forma ou mente e rupa, matéria ou corpo; salayatana, os seis órgãos sensoriais, incluindo a mente enquanto órgão; phassa, (con)tato; vedana, conação; tanha, sede, avidez; e upadana, apego). Essa cadeia faz as vezes, no budismo, tanto de uma Filosofia completa da Natureza, quanto de uma compreensão de como a consciência se insere nesta última. [...] "O budismo", afirma Saddhatissa, "não reconhece um conflito entre religião e ciência, já que a primeira é, propriamente falando, uma aplicação espiritual prática da segunda".

Na perspectiva do budismo, tal como eu o interpreto, é geralmente impossível para nós ignorar totalmente nossa Verdadeira Natureza, por mais "identificados" que estejamos com o que aparece no espelho do Universo. A psicose seria [...] originada por essa avijja - ignorância total. Mas a avijja - Ignorância, (felizmente?) não é Absoluta. Toda infinitude ainda é tempo: a avijja - Ignorância é, literalmente, "eterna enquanto dura": a Roda da Vida — Bhavacakka — corresponde ao "fechamento do círculo" de Identificações. Ela não tem "começo", ou "causa primeira", mas tem "fim", e o fim é "causa sui". Só há "lei", ou "encadeamento de causa e efeito", porque o movimento é circular: o tempo não é uma linha que vem de um passado finito para um futuro finito. E não há nenhum "poder" externo que possa penetrar no Samsara (perambulação perpétua), pois no centro dos círculos só cabe um ponto cego. É como se houvesse, entre o caos e o cosmos, uma só "evolução", panvitalista ou pan-orgânica, em que tudo é "campo", ou padrões de atividade, do Universo à partícula; kala (tempo) e akasa (espaço).

Porque não ignoramos totalmente nossa Verdadeira Natureza, — porque não somos psicóticos — é que o que chamamos de "desejos" jamais podem ser satisfeitos. A "forma de inconsciência", que chamamos de "consciência intencional", é um "querer para si o vir-a-ser um outro" (minha interpretação de bhava): eis a identificação que Heráclito   chamava de "caráter" e que, nas brumas sombrias da Psicanálise contemporânea, chama-se, como na Antiguidade, "persona". O "querer-para-si-o-vir-a-ser-um-outro" é um conceber-se como sujeito à duração, por oposição a uma pseudo-eternidade vista como infinitude: eis o sofrimento, ou seja, a sujeição ao tempo. A "isso", a Verdadeira Natureza só se pode contrapor como Sunyata, Vazio.

Até mesmo o ódio é mais próximo do amor que o apego (upadana) aos "frutos da ação", que nada mais é do que apego à auto-identificação como "agente". Esse apego ao que "vai acontecer" é, sob a forma ilusória do "passado", kamma, em sânscrito, Karma. Com exceção do primeiro elo (avijja - ignorância) e do último (decadência e morte), os dez elos restantes são chamados de "os dez karmas", ou "atos". O falso senso de "mim mesmo - eu" carrega o karma. Por isso, acima de lobha (frustração), dosa (aversão) e moha (ira), aqui, nesse "ranger de dentes", está bhaya, o medo. Só podemos temer o que ainda não aconteceu. De modo que as pessoas ditas "de fé", que desejam livrar-se do tanha - desejo, manifestam o medo sob uma das suas formas mais insidiosas. Se algo "permanece", após a dissolução do corpo, só pode ser uma combinação de upadana e bhaya. Por isso ninguém se torna mais sábio porque morre, e é tolo invocar os mortos; por isso, no Prefácio, só agradeci aos mortos "que não fazem barulho", porque estão verdadeiramente mortos, ou aos que se desfizeram em palavras "sublimes", pela sua compaixão. "Na vida seguida de morte ..., quanto, de um homem, jamais terá "vivido"? O que, dele, "morre", e o que, dele, renasce?"

Saddhatissa decompõe a palavra pali, ‘Paticcasamuppada’; nas suas unidades semiológicas: paticca, por causa de; sam — Sânscrito, sama, o mesmo, ou sama, do mesmo modo —, da raiz comum sa, juntos; uppada, vindo-a-ser, aparecendo; mas também corretamente em direção a um mesmo ponto, samuppada — em Sânscrito, samyak. Sendo assim, a Nidana, Cadeia, é também sua própria extinção pelo sopro de Mahaprajna, ou Grande Sabedoria, misteriosamente perturbada por Mahakaruna, ou Grande Compaixão. O olho é fruto do ver, os ouvidos do ouvir, e não o inverso. "Não se trata de uma questão de o [sujeito] fabricar o sofrimento; ele é, ele mesmo, uma forma de sofrimento. O sentido de "mim mesmo - Eu" que gera a ilusão é, ele mesmo uma ilusão" (Raddhakrishnan usa "indivíduo", em vez de "sujeito"). A avijja - Ignorância pode abolir-se a si mesma, numa suprema — e a única autêntica — manifestação de Vida, aqui no mundo (que mais poderia querer Nietzsche  ?) .

Raddhakrishnan pensa que "a metafísica budista só se torna satisfatória e inteligível, se completada por alguma forma de idealismo absoluto" (ele pensa no Vedanta), mas isto é falso. Um idealismo absoluto hipostasiaria inevitavelmente a Verdadeira Natureza (Tathagata), ainda que sob o disfarce "transcendental". E tal hipóstase é um impedimento à compreensão da Cadeia. O que se compreende não é o Ser: este, é-se. O que se compreende é o não-ser (Anicca, Impermanência; Dukkha, Sofrimento; e Anatta, Insubstancialidade e Inessencialidade).

No Dhammapada, opõe-se o agregado "mental-e-físico", impermanente e sofredor, às "coisas" (dhamma, em Sânscrito, dharma). Mas tal contraposição jamais deve ser interpretada como emprestando às "coisas" uma sustentação ontológica. A anicca - Impermanência e o dukkha - Sofrimento aparecem relacionados aos "fenômenos"; o verso, "Todas as coisas são desprovidas de eu", "Sabbe dhamma annata’ti" é traduzido por Nissim Cohen por "Todas as constituições da natureza são insubstanciais" [1]. Por isso, criticando Stcherbatsky e o Odham Dictionary of the English Language, que define "ente", para o budismo, como "Uma coisa completa em si mesma, sua existência real em oposição a qualidades atributos; algo com uma existência real por si mesma", Saddhatissa contrapõe-lhe "ditthe va dhamme", como "aquilo que nos sustenta na vida quotidiana", ou o "aqui mesmo neste mundo", da tradução do verso por Davids. A avijja - Ignorância extingue-se a si mesma; "aqui mesmo", "neste mundo mesmo". Compreendendo-se a sede (tanha), "o sofrimento cai (dela) como gotas d’água d’uma folha de lótus" ; pois compreendê-la é extirpar o apego ao "si" ("amor próprio"), "como no outono se corta com a mão a flor de lótus" , o que, por sua vez, só é possível se você "Escutar o desejo como você escutaria uma canção, ou a brisa entre as árvores", disse Krishnamurti a Asit Chandmal.

Vimamsa (investigação), appamada (vigilância), vipassana (introvisão), vicara (contemplação), ekaggata (atenção) levam, neste mundo, à Vida, ou seja, Arupavacara Citta, Não-Mente, — o que os hindus chamam de Sat Chit Ananda. A "cultura da mente", bhavana, longe de ser uma supressão dos sentidos, é a sua sintonia e a sua harmonização, e leva aos quatro humores sublimes, ou extáticos — Brahma viharas —, a bondade amorosa, maitri; a compaixão, karuna; a alegria, mudita; e a imparcialidade, ou equanimidade, upekkha. A compreensão da Cadeia, no entanto, é parte da Iluminação: todos os Budas se iluminaram pela compreensão da Natureza do Encadeamento Dependente. A Verdadeira Natureza não é fácil de ser compreendida: a Ananda, que a julgava "fácil", o Buda responde, no Mahapadana Suttanta :

Profundo, na verdade, Ananda, é o Encadeamento, e ele também parece profundo. É por não compreenderem essa doutrina, por não penetrá-la, que esses seres tornaram-se emaranhados como um novelo de linha, como um emaranhado ninho de pássaros ... sujeitos à ronda de renascimentos, num estado de sofrimento.


Observações

[1Id. p.114-15. — os três versos prosseguem de maneira idêntica: "Tão logo alguém vê (isto) com Sabedoria, Então do sofrimento se enfastia; esse é o Caminho da Purificação".