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existencialidade

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Excertos do Capítulo "Heidegger   Vida do Espírito - A FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA ATRAVÉS DA FENOMENOLOGIA DA VIDA DO ESPÍRITO"

O SIGNIFICADO ESPECIAL DA DESCOBERTA DA EXISTENCIALIDADE
Segundo Heidegger, o existir do homem consiste em projetar-se segundo diferentes possibilidades de ser, definidas por sua facticidade histórica [1]. Este projetar-se é essencialmente para cada qual compreender-se a si mesmo na sua individualidade irredutível [2]. Entretanto, esta compreensão existêntica (existenziell) [3] e em geral atemática do próprio ser-no-mundo acontece à luz de uma compreensão ontológica, também atemática, do modo de ser da vida em geral [4]. Esta pré-compreensão da existencialidade permanece, de início e de ordinário, encoberta por uma interpretação inadequada do fenômeno humano [5]. Em vez de ser entendido a partir de uma perspectiva existencial, o homem é definido como substância viva, dotada da faculdade de pensar. Destarte, a compreensão, mais ou menos expressa, que o homem tem comumente de si mesmo, é condicionada por uma ideia de ser obtida a partir do ente intramundano ou natural.

Apesar disso, encontram-se na auto-interpretação espontânea do homem vários traços da compreensão original e autêntica da existência, normalmente sufocada no seu conjunto. Não faltam, com efeito, documentos que testemunham, num nível pré-científico, esta experiência universal. No 42 de Sein und Zeit Heidegger apela para uma fábula latina, atribuída a Higino, na qual "cura", o cuidado, é interpretada como a origem do ser do homem. Trata-se de uma opinião corrente entre os estoicos, da qual também Sêneca se fez porta-voz. Nem Parmênides  , apesar de por primeiro ter saltado explicitamente o fenômeno do mundo na investigação filosófica e assim ter orientado toda a tradição ontológica para uma visão naturalística do ser, era completamente alheio à compreensão existencial da vida, como demonstra a sua doutrina das duas vias, respectivamente do descobrir e do ocultar. O descobrir baseia-se num compreender, que diferencia os dois caminhos e se decide por um deles [6]. Traçando em rápidas pinceladas a história do conceito de "mundo", Heidegger depara, logo de início, com o fragmento de Heráclito  : Para os despertos há um só mundo, comum a todos; o que dorme, ao invés volta-se para seu próprio mundo. Heidegger comenta: O mundo é aqui posto em relação com os modos fundamentais, nos quais o homem faticamente existe. A frase anuncia já uma noção não só transcendental, mas também existencial de mundo.

A mesma compreensão existencial da vida aparece em diversos símbolos e expressões consagradas da linguagem corrente, mostrando que a ideia de existência alimenta-se de uma experiência fundamental do homem [7]. Aliás, não é por um capricho qualquer que Heidegger denomina assim o ser do homem. De fato, "Dasein - existência" tem também o sentido especial de vida humana. Nesta acepção, o termo já não significa o fato indiferente de Dasein - estar-aí entre outras coisas no espaço, mas sim o modo de ser do homem naquilo que ele tem de específico, justamente em relação aos outros viventes, a planta e o animal, o anjo ou Deus. Trata-se, portanto, daquela zona na qual as gamas de significação dos termos existência e vida se cruzam e se confundem. Vida não tem aqui um sentido biológico ou naturalístico, mas antes existencial e histórico. E o papel que cada personagem representa no teatro do mundo. Ela tem um caráter estritamente pessoal. Defunto é justamente aquele que acabou de desempenhar a sua função. A vida de alguém constitui a sua história, não enquanto refletida numa narração biográfica, mas como o próprio acontecer e desenrolar-se da existência. Compete a cada um assenhorear-se de seu destino ou cair vítima dele. Entre os caminhos da vida, o homo viator deve encontrar o seu caminho.

Portanto, a compreensão concreta da vida numa perspectiva existencial não é privilégio do cristianismo. Se, de fato, foi a partir do estudo da antropologia cristã que Heidegger elaborou a sua ideia de existência, é porque a fé põe o homem diante de opções sumamente graves  , de sorte que os traços fundamentais da existência sobressaem com uma intensidade toda especial [8].

Existencialidade I - SEGUE


Observações

[1SZ, pp. 12e, 43c.

[2SZ, p. 42d.

[3À falta de outro vocábulo traduzimos "existenziell" pelo neologismo "existêntico", reservando a forma vernácula "existencial" para exprimir o alemão "existenzial". A diferença entre a compreensão existêntica e a existencial é explicada brevemente por Heidegger em SZ, pp. 12e-13b.

[4SZ, p. 12b.

[5SZ, pp. 15c-16b.

[6SZ, pp. 222d-223a. Em Einführungin die Metaphysik Heidegger reconhece no poema de Parmênides a indicação de três caminhos, ao lado do ser e do não-ser, também a via da aparência (pp. 84-86).

[7É verdade que Heidegger declara: "No caso destes conceitos elementares é, em geral, preferido o significado vulgar, não o original e essencial. Este é sempre de novo encoberto e só raramente e com dificuldade chega a ser conceitualizado" (WG, p. 23). De fato, a expressão "mundo", à qual se refere principalmente Heidegger nesta passagem, assume geralmente o sentido, naturalístico e ôntico, de conjunto de coisas no espaço. Isto não impede que Heidegger, ao estudar a acepção peculiar que Kant dá, algumas vezes, ao vocábulo, mencione várias locuções da linguagem ordinária, que denotam uma compreensão existêntica do mundo (WG, pp. 33-36). Também quando somos levados a definir teoricamente o homem ou a vida humana, fazemo-lo ordinariamente numa linguagem naturalística, dada a força da tradição ontológica que nos alimenta. Não obstante isto, na sua automanifestação despreocupada, a vida apresenta-se muitas vezes sob um aspecto existencial, como mostrarão as próximas linhas, com isto não negamos que as fórmulas citadas a seguir possam ter sofrido a influência da compreensão cristã da vida ou mesmo ter sido criadas por ele, como Heidegger nota a propósito da acepção de mundo, que encontramos em Kant (WG, p. 35).

[8"Não é por acaso que os fenômenos da angústia e do medo (...) entram no campo de visão da teologia cristã. Isto aconteceu sempre que o problema antropológico do ser do homem para Deus obteve a primazia e fenômenos como fé, pecado, amor, arrependimento, dirigiram o questionamento" (SZ, p. 190 n. 1). "Não é porém por acaso que no contexto da nova compreensão ôntica da existência, que emergiu no cristianismo, a relação entre o cosmo e a existência (Dasein) humana e portanto o conceito de mundo se torne mais rigoroso e mais explícito" (WG, p. 24).