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objeto do pensamento

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Excertos de Alain de Libera  , Filosofia Medieval

Enquanto questão referente à natureza do pensável. a problemática do objeto do pensamento se acha no ponto de encontro da lógica, da metafísica e da psicologia. Essa problemática, conhecida sob o nome de "problemática dos universais" é originária de Porfírio   e de Boécio  , e se desenvolveu até o século XII sob essas duas únicas influências, e depois, no século XIII, sob a de Avicena   e a de Averróis  , antes de resultar, nos séculos XIV e XV, na oposição de duas "vias" filosóficas determinadas: o realismo e o nominalismo.

A Isagoge se abria com um certo número de questões "misteriosas", que Porfírio se abstinha voluntariamente de tratar numa simples introdução à teoria das categorias: os gêneros e as espécies subsistem à parte? Não existem eles, antes, unicamente nos intelectos puros ("nus")? São eles substâncias corporais ou incorporais? Estão separados dos sensíveis ou situam-se neles? Qual é, enfim, a sua permanência? Ainda que essas questões se refiram antes à metafísica que à lógica, todos os comentaristas da logica vetus propuseram uma teoria dos universais marcada pelo aparecimento de uma primeira clivagem entre realismo e anti-realismo. Essa clivagem é um dado estrutural da problemática medieval dos universais. Pode-se ver sua fonte no fato de que a Idade Média, desde o princípio, e constantemente, hesitou entre duas definições do universal: o universal segundo Boécio, definido como "comum a vários"; o universal segundo Aristóteles   e Porfírio, definido como "predicado de vários". A combinação dessas duas definições e dos dois problemas que elas acarretam, um puramente metafísico, outro majoritariamente lógico, ocasionou uma profusão de doutrinas mais ou menos compósitas, que a distinção entre o universal propriamente dito (a res universalis residindo in multis) e o predicável no sentido estrito (o predicado universal dito de multis) nem sempre levantou.

As teses realistas são classificadas e discutidas sistematicamente por Abelardo na primeira parte de sua Logica ingredientibus. Se sua primeira variedade, o realismo dito da "essência material", que professa a identidade essencial de uma "matéria" ou substância única (gênero ou espécie) para todos os indivíduos singulares exclusivamente distinguidos uns dos outros por diversas formas acidentais, não se deve a uma escola precisa, a segunda forma de realismo, dita "teoria da indiferença", parece caracterizar o primeiro magistério de Alberico de Paris. Nessa teoria, o universal tem uma existência real que não consiste na identidade de uma mesma essência material, mas na não-diferença (indifferentia) de realidades distintas: os homens, tomados um a um, são diferentes uns dos outros, mas não diferentes uns dos outros porquanto não diferem em sua natureza de homens (in homine), eles são pois singulares segundo sua distinção e universais segundo a indiferenciação e o "encontro de seus caracteres semelhantes". A universalidade do homem ocasiona duas doutrinas distintas: uma para a qual a realidade universal é a "coleção" dos indivíduos singulares (os homens), outra para a qual o universal é o próprio indivíduo enquanto possuidor de uma certa "similitude de natureza" com outros indivíduos (Sócrates   enquanto homem).

Anti-realista, a teoria dos Melidunenses faz do universal uma "coisa inteligível" (res intelligibilis), que não é nem uma "coisa", no sentido de substância individual sensível, nem mesmo — isto contra os Montam e os Porretani — um elemento ou uma propriedade das coisas sensíveis (Ars meliduna, entre 1154 e 1180). Reconhece-se ao universal, definido como "similitude ou comunhão de várias coisas em pensamento" (similitudo vel communio intellecta rerum) uma forma de ser sui generis: simultaneamente existindo no exterior dos sensíveis (extra sensibilia), pensado no exterior dos sensíveis, e pensado a respeito dos sensíveis (circa sensibilia), o universal possui um ser "por si" comparável ao de um "enunciável" — o lekton dos estóicos — teoria retomada na Ars Burana, e depois no século XIV com a noção de esse obiectivum. Enquanto res intelligibilis, o universal é um certo "estatuto" significado por um nome apelativo, percebido unicamente pelo intelecto, e que pode ser atribuído a vários indivíduos da mesma "espécie" (maneries) em uma predicação "substancial"; mas os Melidunenses admitem também "estatutos singulares e privados" significados pelos nomes próprios, que são também "coisas inteligíveis" atribuídas aos indivíduos tomados um a um. Sem ser ainda "nominalista", a doutrina da communio intellecta da Secta Meliduna evoca a posição mais tarde caracterizada por Alberto Magno como tese dos "Nominais" (Nominales), para a qual "toda comunidade residia somente no pensamento" (De praed., II, 2). Não parece que se deva postular uma continuidade histórica entre esses Nominales e os autores "nominalistas" ou "terministas" do século XIV (a via moderna).

A posição de Abelardo é também anti-racista, sem ser ainda, exatamente, nominalista. Com efeito, o "não-realismo" abelardiano é acompanhado de um certo platonismo  , mais precisamente de uma "doutrina platonizante da Inteligência divina ou do Verbo como Lugar das Ideias" (J. Jolivet). Reduzida ao essencial, essa posição comporta três pontos. Contra Guilherme de Champeaux: os universais, definidos como predicáveis, estão do lado dos signos, não do lado das coisas; contra Roscelin de Compiègne: esses sinais não são simples flatus vocis, mas palavras ou nomes (sermones) dotados de uma significação convencional; a predicação de um universal tem um fundamento ontológico, o "estatuto" exprime o "encontro" de vários indivíduos em um mesmo "ser" — os homens, assim, não concordam "no homem" (in homine), mas somente no "ser-homem" ou no "fato de ser homem" (in esse hominem). Status e significado proposicional (dictum propositionis) não são coisas, mas "quase-coisas" (quasi res) tomadas, uma, no nível dos objetos de referência, outra, no nível do sentido. Todavia, esses status genéricos e específicos, dos quais o homem só tem um conhecimento abstrativo, são concebidos e criados por Deus, e é essa "noção divina que vem garantir a verdade das predicações, que são do domínio do dialético" (J. Jolivet). O não-realismo do universal (dictum, Sachverhalt) exige o plano de fundo teológico da Ideia divina. Poder-se-ia ainda dizer que, como muitos autores medievais, Abelardo é realista no terreno de Boécio (o universal in multis) e não-realista no de Aristóteles e de Porfírio (o universal de multis).

O século XIII assiste ao triunfo de um realismo moderado, largamente inspirado pela lógica, a metafísica e a psicologia de Avicena. Em lógica: todos os autores concordam em retomar a definição aviceniana do universal como aquilo que é simultaneamente "inerente a vários e predicado de vários". Em metafísica e em psicologia: afirmando, em geral, "com o conjunto dos peri-patéticos", que os universais não existem como tais nas coisas, mas apenas nos "intelectos puros e nus", a maioria dos autores dos anos 1250-1290 se entendem mais especialmente para distinguir com Avicena "três estados do universal" — ideal ou ante rem, abstrato ou post rem e concreto ou in re.

Formulada contra a tese realista dos "latinos" do século XII (entre os quais os Montani e os Porretani) definindo o universal como "forma das realidades individuais" — e até mais precisamente contra a definição dos gêneros e das espécies como forma communis fundata in suis individuis (tardiamente) atribuída por Wycliff a Robert Grosseteste   (In Arist, Post. Anal, 1,1) — a distinção dos três estados do universal é algumas vezes remetida a Platão (Alberto Magno, Phys., I., I 6; De an., I, I; 4; De int. et intel., I, II, 5) mas seu verdadeiro ponto de partida é a Lógica de Avicena (Veneza, 1508, f° 12ra-va) e a distinção entre universais in multiplicitate (ou naturalia). postquam fuerínt in multiplicitatem (ou logicalia) e ante multiplicitatem (ou intellectualia). Em Gilles de Roma (In I Sent., d.19, p. 2, q.l) o universal ante rem é identificado ao "universal de Platão" (quia causat res), o universal in re "ao de Aristóteles" (quia idem est in essentia cum rebus), sendo o terceiro acrescentado aos outros" não como "espécie predicada de vários" mas como "espécie semelhante a vários". Geralmente assimilado à Ideia divina segundo Agostinho, o universal ante rem é também abordado em certos autores à luz da teoria aviceniana da "indiferença da essência", e pensado como uma espécie de ideia fenomenológica pura, distinta ao mesmo tempo do conceito empírico abstrato e da coisa singular concreta (Martinho de Dácia, Quaest. super Libr. Porphyrii, q. 8). A distinção aviceniana entre logicalia e intellectualia serve ainda de fundamento à distinção entre universal "lógico" abstrato (universal de predicação) e universal "teológico" separado (universal de produção), desenvolvida na linha da teoria dionisiana e proclusiana da causalidade essencial ("pré-contenância") por Alberto Magno (Metaph., XI, II, 12; Super Dion. De div. nom,, II, 84), Dietrich de Friburgo (De cogni-tione entium separatorum, 10, 1-4) e Bertoldo de Moosburg (Super Elem. Theol., IA). A mesma distinção continuará até o De universalibus (II, II) de Wycliff (+384). com uma oposição entre o universal "lógico" e o universal "metafísico", colocada sob o duplo patrocínio de Eustrato (In I Ethicorum, com. 48) e dé Alberto Magno (De An., I, I, 4).

O século XIV é principalmente marcado pelo aparecimento do nominalismo no sentido estrito e pela oposição entre diferentes formas de realismo e de nominalismo. Na psicologia, o nominalismo se caracteriza antes de tudo por sua recusa do modelo trinitário do pensamento veiculado pelo peripatetismo greco-árabe. Essa recusa se explica em parte por razões ontológicas (num mundo de particulares, não há lugar para uma teoria da intelectualidade) e epistemológicas (o objeto do conhecimento é o indivíduo atingido diretamente pelo conhecimento intuitivo).

A categoria historiográfica de "nominalismo" está longe de ser homogênea — certos historiadores modernos (Obermann, Trapp) distinguem o "nominalismo de direita" dito "histórico-crítico" (os representantes do significabile complexe, Gregório de Rimini (apr. 1322), Hugolino de Orvieto (+ 1373), o "nominalismo moderado"., dito "ockhamista ou "lógico-crítico moderado" (Ockham, Pierre d’Ailly (+ 1420-1421 e o "nominalismo de esquerda", dito "modernista" ou "lógico-crítico radical" (Robert Holkot (+ 1349), Nicolas d’Autrecourt (+ apr. 1350), Jean de Mirecourt, por volta de 1345, Adam Woodham (+ 1358. Entretanto, se se reserva o termo de "nominalismo" apenas ao ocjkhamismo, a tese nominalista sobre os universais e sobre a epistemologia do conhecimento pode ser reduzida a alguns princípios fundamentais: recusa da existência de toda "natureza comum" (a "semelhança" das coisas de uma mesma espécie é fundada sobre as características de cada indivíduo, não sobre a sua participação em uma mesma essência possuída "em comum"); redução da "semelhança natural" a um "conceito universal" originaria-mente definido a partir do modelo do "signo natural" e posteriormente desenvolvido em signo convencional ou "termo" de uma linguagem falada ou escrita; abordagem proposicional das realidades particulares, extramentais, dadas pela experiência sensível; ruptura com o modelo objectivista do conhecimento abstrativo, substituído por uma teoria do "conhecimento intuitivo" direto e imediato do particular (W. Courtenay).

Formulada a partir da ontologia e da semântica filosófica de Ockham, a teoria "ockhamista" dos universais afirma pois, essencialmente, que os universais são termos mentais, vocais ou escritos (Jean Buridan, Quaest. in Met. Arist., VII, q. 15): um universal é uma "coisa singular", uma "intenção singular da alma" que só é universal "por significação"., a título de "signo predicá-vel de vários" (Ockham, Summa Logicae, I, 14).

As controvérsias entre realistas e nominalistas retomam o essencial das discussões dos séculos XII e XIII em um novo quadro conceituai, marcado principalmente pela presença de Averróis, pela força da teoria escotista da distinção formal e pela subida contrária da ontologia e da semântica filosófica de Ockham. Os debates indagam se os universais existem realmente (utrum universalia existam in rerum natura), se existe fora dos indivíduos ou somente neles (utrum habeant esse separatum a singularibus vel existant in suis singularibus), se uma única e mesma coisa pode existir ao mesmo tempo em vários indivíduos — ou mais precisamente: se um mesmo universal pode existir inteiro (secundum se totum) em cada um de seus particulares sem estar numericamente multiplicado. Supondo-se que os universais sejam separados dos indivíduos, pode-se ainda perguntar se eles existem somente no pensamento ou também fora dele (extra intellectum); se se admite que eles existem fora do pensamento — tese dita "platônica" — a questão é saber se eles existem apenas em Deus a título de Ideias que representam as espécies das coisas criadas (tese dita "agostiniana") ou se eles possuem uma existência por si, exteriormente ao pensamento divino (Gauthier Burley, Super ortem veterem Porphyrii et Aristotelis, Veneza, 1947, f° 3vb).

Durante todo esse período, a distinção dos três estados do universal é frequentemente reformulada, nos termos do novo jogo epistemológico: seja nominalista, com a distinção bipartite entre o universal "de causalidade" (secundum causalitatem), que é universal porque é "causa de muitos" (causa multorum) — é o caso de Deus, das inteligências e dos Corpos celestes —, e o universal de "predicação ou de significação", termo mental, vocal ou escrito que é "predicável de várias" coisas que ele "significa indiferentemente e para as quais ele supõe" (Jean Buridan, Quaest. in Met. Arist., VII, q. 15); seja realista, com a distinção tripartite entre universal de causação (= ante rem), universal de comunicação (= in re), universal de significação ou de representação (= post rem), defendida principalmente por Wycliff (De universalibus, I, I). A supressão do universal in re pode ser considerada como um traço distintivo do não-realismo.