Página inicial > Termos e noções > estrutura de funcionamento da alma

estrutura de funcionamento da alma

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Excertos de Alain de Libera  , Filosofia Medieval
Conhecido antes do De anima de Aristóteles, o De anima de Avicena   fornece o âmbito quase definitivo da teoria peripatética da alma. A especificidade da abordagem aviceniana é articular sistematicamente uma teoria anatômica funcional do cérebro, uma classificação das diferentes atividades psicológicas da alma, uma teoria do pensamento intelectual ou intelectivo que situa o ato de pensamento do homem no seio de um processo de emanação tendo como primeiro e último cenário o conjunto do cosmo inteligível (o universo das Inteligências e dos intelectos separados, proposto pelo De causis). A organicidade do laço estabelecido entre biologia, psicologia e teologia explica o sucesso do modelo aviceniano.

A) Teoria das faculdades e localização cerebral — A teoria aviceniana da alma distingue cinco faculdades ou potências íntimas (ab intus) da alma (vires animae) assegurando a recepção e o; tratamento dos dados externos (a foris) provenientes dos cinco sentidos (De An., I, 5). Cada uma dessas faculdades possui uma localização cerebral própria.

A primeira instância é o senso comum, cuja função é receber as formas sensíveis transmitidas à alma pelos cinco sentidos. A segunda é a vis formans (al-musawwira) ou imaginatio (khayal) cuja função é reter essas formas fora de toda estimulação atual (post remotionem sensibilium). A terceira instância, chamada vis imaginativa (mutakkayyila) nos vivos animados em geral e vis cogitans (mufakkira) no homem, serve para compor e dissociar as imagens conservadas na imaginatio. A quarta é a vis aestimationis (wahmiyya), cujo papel é apreender as "intenções não-sentidas residindo nos sensíveis singulares": no sentido próprio do termo, as "intenções" (intentiones) designam o que os sentidos interiores percebem de uma realidade sensível, sem que "os sentidos exteriores lhes sirvam de intermediário". As "intenções não-sentidas dos sensíveis" se opõem, pois, às "formas dos sensíveis", que são percebidas em primeiro lugar pelos sentidos exteriores, e depois somente (e graças a eles) pelos sentidos interiores. Um exemplo típico de "intenção" é a "periculosidade" do lobo, que o carneiro já percebeu, e que o faz fugir à vista da fera, isto é, à apresentação de sua "forma". A quinta instância é a vis memorialis (hafiza) ou reminiscibilis (dhakir), que "retém as intenções apreendidas pela estimativa". O conjunto da estrutura das potências da alma pode ser expresso por duas analogias de proporção: a relação da "memorial" com a estimativa é análoga à relação da imaginação com o senso comum; a relação da memorial e da estimativa com as intenções não-sentidas é análoga à relação da imaginação e do senso comum com as formas sensíveis.

O trabalho anatômico de Avicena desenvolve a versão "dinâmica" da "doutrina celular" da função cerebral introduzida por Qusta b. Luqa. A cada "célula" (ou "concavidade") do cérebro é associada uma função específica: o sentido comum tem seu lugar na concavidade anterior, a imaginação na extremidade da concavidade anterior, a imaginativa ou cogitativa na concavidade mediana, no lugar do vermis cerebeloso (cuja ação valvar assegura a circulação do pneuma), a estimativa no cume da concavidade mediana, a memorial na concavidade posterior. Completando adequadamente o De natura hominis de Nemésio de Êmeso (atribuído pela Idade Média a Gregório de Nissa), o pseudo-agostiniano De spiritu et anima (Alcher de Clairvaux) e o De differentia de Qusta b. Luqa, a doutrina aviceniana das localizações cerebrais será largamente popularizada pela Philosophia pauperum de Albert d’Orlamünde (impressa sob o nome de Alberto Magno).

A particularidade mais notável dessa doutrina é que ela não inscreve o intelecto entre as potências receptivas da alma unida ao corpo. A psicologia filosófica árabe se afasta pois radicalmente da visão galenica da razão como virtus in corpore: nem a vis cogitativa nem a vis aestimativa são de ordem intelectual ou intelectiva. Como sublinhará Averróis  , o erro de Galeno foi ter confundido o pensamento capaz de "intenções universais", ou razão, e a simples cogitativa, capaz apenas de "intenções individuais" (De An., III, com. 6).

Essa distinção, que coincide com a distinção moderna entre o "conceito geral abstrato", de origem empírica, e a Idéia pura, de origem não-empírica, corresponde à distinção farabiana entre o universal como forma inteligível apegada a uma matéria e desapegada da matéria por "abstração", objeto de intelecto em ato (in effectu), e o inteligível verdadeiro, por si separado de toda matéria, objeto do intelecto "adquirido" (intellectus adeptus), "uma vez que a alma entrou em posse de todos os inteligíveis" de origem empírica. Mutatis mutandis, é a versão medieval da distinção entre o empírico e o transcendental.

B) Origem do conhecimento e transcendência do intelecto. — O problema do conhecimento verdadeiramente universal se confunde com o da existência e do estatuto da alma razoável capaz, de assegurar a apprenhensio intelligibilis, da qual as potências receptivas da alma, enquanto está em um corpo, são incapazes. Essa apreensão "pura" (nuda), que é a abstração verdadeira, sendo recepção de formas inteligíveis "totalmente desnudadas (denudata) de matéria" (Avicena, De An., II, 2), a epistemologia do conhecimento inteligível deve pois afrontar um duplo problema: o de sua instância receptora e o de sua instância produtora. As noções aristotélicas de intelecto possível e de intelecto agente fornecem o quadro geral da resposta. A pergunta é então se essas duas instâncias fazem ou não fazem parte da alma humana. Dois modelos vão se oferecer aos latinos: o de Avicena, que situa o intelecto possível na alma humana e faz do intelecto agente um ser separado da alma, o Doador das formas identificado à décima Inteligência do cosmo peripatético; e o de Averróis, que situa os dois fora da alma ("monopsiquismo").

O modelo aviceniano, que vê em toda abstração verdadeira uma emanação proveniente de um ser transcendente como uma iluminação-conceito distinta da iluminação-julgamento pregada pela tradição agostiniana do De trinitate (Gilson), é o mais largamente difundido. O modelo averroísta só é tardiamente reconhecido como tal — e desde então geralmente combatido.

A primeira testemunha do avicenismo psicológico é Gundissalvi, para quem a alma humana é uma substância espiritual dotada apenas de um intelecto possível, que, voltando-se para as imagens sensíveis (conversio ad phantasmata), se torna apta (se "dispõe") a "receber" a iluminação do intelecto agente, substância espiritual separada da alma humana. No século XIII, essa interpretação é retomada por Jean Blund, que parece identificar o Dator formarum com uma Inteligência angélica.

O segundo estágio é representado pelo teólogo parisiense Guilherme de Auvergne, principal figura do "agostinismo avicenizante". Em seu De anima, Guilherme retoma a demonstração aviceniana da existência da alma (1,4) e a de sua incorporalidade, apoiada no célebre argumento do "homem voador" (II, 13, segundo Avicena, De An., I. 1 e V, 2) onde alguns quiseram ver uma primeira versão filosófica do cogito cartesiano. Mas ele retoma também o essencial da inspiração agostiniana, afirmando a absoluta simplicidade da alma (Ego sum qui intelligo, qui seio, qui cognosco), o que o leva a rejeitar a tese (pseudo-averroísta) segundo a qual o intelecto possível ou "material" seria uma parte da alma: para ele, o intelecto material é a essência da alma; em contrapartida o intelecto agente, princípio de iluminação e lugar dos inteligíveis em ato, não é o Dator formarum cosmológico de Avicena, mas o próprio Deus.

O teólogo franciscano Jean de La Rochelle é um dos primeiros autores latinos a apresentar o intelecto possível e o intelecto agente como duas partes da alma humana. Sua teoria, extremamente engenhosa, retoma a distinção boeciana do quod est e do quo est. A alma é uma substância espiritual composta de um quod est e de um quo est. O intelecto agente é, certamente, uma Inteligência angélica que ilumina a alma, mas a presença dessa luz na alma é o seu quo est, sua parte "atual": existem pois dois intelectos agentes, a Inteligência angélica separada, doadora das formas, e a parte atuada da alma humana iluminada por ela.

O autor da Lectura in librum de anima, utilizada na Universidade de Paris nos anos 1245-1250, conhece a tese do monopsiquismo radical, mas ele a atribui a Pitágoras, não a Averróis (Lectura, I, 10; III, 1). Conhece ele também a tese das "duas partes" da alma, mas a rejeita, como, antes dele, Guilherme de Auvergne; intelecto agente e intelecto possível são dois aspectos da alma inteira, um corresponde ao intelecto tal como ele é em si mesmo, o outro corresponde ao "nosso" intelecto "deste mundo", "convertido para os fantasmas"; este é mortal, não em sua substância que é a própria alma, mas em sua passibilidade, que resulta da união da alma ao corpo e não subsiste quando a alma é separada do corpo pela morte (I, 3; III, 2); aquele, face superior da alma, possuindo as Idéias das coisas por posse "atual" e não apenas "habitual", exercerá sua atividade própria depois da morte, mas, desde agora, permite a atividade do intelecto possível, atua-lizando-o.

Pode-se ler o quadro completo da evolução dos latinos em Roger Bacon. Em suas Questões parisienses dos anos 1245, Sup. XIm Primae Philos. Arist., adere à tese das duas partes (inferior/superior) da alma, mas em outro texto de seu período parisiense, as Quaestiones alterne, rejeita essa opinião, que atribui (como Guilherme de Auvergne) a Averróis, e concorda com a opinião de "al-Farabi, de Aristóteles e dos teólogos", que fazem do intelecto agente uma Inteligência separada. Em suas obras posteriores (principalmente em seus três Opus), identifica o intelecto agente com Deus,

A existência de uma verdadeira corrente monopsiquista averroísta, combatida por Alberto Magno (De imitate intellectus contra Averroem) e Tomás de Aquino (De unitate intellectus contra averroistas), e efetivamente atingida pelas condenações parisienses de 1277, permanece muito discutida depois dos trabalhos de Ernest Renan.

O "averroísmo" de Siger de Brabant (no De felicitate ou De intellectu) só é conhecido por nós pelas citações do Liber de intellectu (I, 4, 10) de um averroísta italiano do século XVI, Agostino Nifo, descobertas em 1942 por B, Nardi. As teses do De anima íntellectiva, que afirmam, a partir da eternidade da espécie humana, que a alma intelectiva está sempre unida a um corpo, que ela é forma de um corpo (e depois de um outro corpo), pelo fato de que ela opera nele (intrinsecum operans) e que o "homem só pensa" (homo intelligit) pelo fato de que o intelecto, "pensando, opera nele", merecem mais atenção essas teses serão encontradas no século XIV em João de Jandun (t 1328) — todavia, Siger parece ter evoluído muito nesse ponto, e é provável que ele tenha adotado, finalmente, uma posição muito próxima da ortodoxia tomista. A tese da identidade numérica do intelecto agente será, de qualquer modo, duradouramente professada na Itália do século XIV, como Taddeo de Parma (por volta de 1320), ngelo de Arezzo (por volta de 1325) e Paulo de Veneza (t 1429).

Mais do que pelo monopsiquismo propriamente dito, a psicologia da Idade Média tardia vale e surpreende por sua insistência em situar fora do homem o princípio de seu pensamento.

Sob as fórmulas mais banais das teorias da iluminação dorme a tese segundo a qual o homem não está no princípio de seu pensamento — um intelecto agita nele o universal (intellecta), sem que nisso ele tome parte (sine nobis coagentibus) — mas "pensa", apesar de tudo: o ato de pensamento (intelligere) sendo seu na estrita medida em que "o homem pensa" pelo intelecto (per intellectum) que está unido a ele. Radical ou não, o aristotelismo greco-árabe alimenta toda a teoria do pensamento dos séculos XIII e XIV.

C) Da psicologia à "mística" — A teoria da visão bem-aventurada (visio beatifica), prometida aos eleitos na "pátria celeste" (in pátria) desempenhou um triplo papel na história do pensamento medieval. Em um primeiro nível, ela determinou um confronto teológico entre partidários de uma união pelo intelecto e partidários de uma união pela vontade e pelo amor, cujas figuras paradigmáticas foram, de um lado, os teólogos dominicanos como Alberto e Tomás de Aquino, de outro, os teólogos franciscanos, como Gonzalvo de Espanha e Duns Scot  , e cujo ponto culminante foi atingido na literatura dita dos Corretórios ou das "primeiras polêmicas tomistas" (P. Glorieux). Em um segundo nível, ela suscitou um debate entre filosofia (averroísta) e teologia (cristã) sobre a natureza da felicidade e sobre a acessibilidade de uma "felicidade perfeita" nesta vida (ver infra, seção III). Em um terceiro nível, ela provocou entre os próprios partidários da união intelectual um conjunto de discussões sobre os fundamentos da noética peripatética, que acarretou um vigoroso aprofundamento da teoria dos dois intelectos.

Um dos pontos principais levantados pelas "primeiras polêmicas tomistas" referia-se à teoria tomasiana da união com Deus por "um ato do intelecto" (In IV Sent., d.49, q.l, a.l; Summa theol, 1a Pars, q. 26: a.2; IIa — IIae, q. 3, a.4; Quodl, VIII, q.9, a. 1). Criticada pelo Corretório de Guilherme de La Maré, depois pelo conjunto dos teólogos franciscanos, a posição de Tomás foi defendida em um certo número de Corretórios do corretório (ironicamente batizados de Corretórios do corruptor), entre os quais os principais são Circa de João de Paris (Jean Quidort [t 1396]), Quare, de Richard Knapwell (cujas doutrinas serão formalmente condenadas em Oxford por Jean Pediam em 1286) e Sciendum de Guilherme de Macclesfield. Outras contribuições notáveis são o Apologesticum veritatis contra corruptorium de Rambert de Bologne, o Tractatus de beatitudine de Hervé de Nédellec (entre 1307 e 1309) e as Quaestiones quodlibetales de Jacques de Viterbo (1293-1294) e Jean de Pouilly (por volta de 1311-1312). Todas as defesas da teoria intelectualista da beatítude não são por isso "tomistas": a distinção introduzida por Jean Quidort entre "visão simples" e "visão refletida", que situa a beatitude no "ato de reflexão pelo qual o bem-aventurado sabe que conhece a Deus", é sui generis. Girando o eixo das polêmicas em torno da superioridade do intelecto sobre a vontade, o essencial das discussões abordou a doutrina das faculdades da alma e a perfeição de seus objetos respectivos. Entretanto, foi do próprio seio do campo intelectualista que veio, com Dietrich de Friburgo, a principal crítica medieval à psicologia tomista.

Tal como a compreenderam seus contemporâneos, a teoria tomista da união da alma com Deus per actum intellectus levava o homem a uma situação filosoficamente paradoxal: a Ia-IIae, q. 5. a.5, que afirmava a impossibilidade para toda criatura de chegar naturalmente (secundwn modum substantiae creatae) à visão da essência divina, ao mesmo tempo em que dizia (a. 1) que o homem era capaz de atingir a beatitude por intelectum, se fosse apoiado pela "luz de glória, instaurando seu intelecto em uma certa deiformidade" (Ia Pars, q. 12, a.l). É essa teoria que o De visione beatifica de Dietrich de Friburgo iria subverter, com uma hábil montagem da teoria aristotélico-averroísta do intelecto e da teoria agostiniana da alma, em que a psicologia se realizava, pela primeira vez, como metafísica do espírito, oferecendo assim uma alternativa de conjunto, tanto à versão ontológica tradicional da metafísica (a ontoteologia da "metafísica do Êxodo") quanto às diversas tentativas feitas até então para aclimatar a psicologia filosófica do peripatetismo a um contexto teológico cristão.

Como Tomás, Dietrich afirma que a união perfeita do homem com Deus é de natureza intelectual. Mas esse é o único ponto em que concordam. Com efeito, para Dietrich, a visão beatífica reside na informação do intelecto possível pelo intelecto agente. Esse tema, de origem albertiniana, é precisado de modo revolucionário: há informação do intelecto possível pelo intelecto agente quando há continuação dos dois, isto é, quando o intelecto possível conhece pela maneira pela qual o intelecto agente conhece, por reflexão sobre seu Princípio. Toda a teoria da visão beatífica repousa pois sobre a determinação do modo de conhecimento do intelecto agente. É nesse ponto que intervém a nova metafísica do espírito. O intelecto agente separado e "não-misturado" (segundo uma expressão atribuída por Aristóteles a Anaxágoras  ) é identificado com o "fundo secreto da alma" (abditum mentis) segundo Agostinho. É uma substância dinâmica, que é substância enquanto age ou opera, cujo objeto não é nada mais que essa atividade ou operação que lhe é idêntica enquanto ela é substância, de modo que o pensamento pode ser definido como uma procedência na qual o pensado é a própria procedência. Como fundo secreto da alma, o intelecto agente é não apenas princípio de todo conhecimento, mas exemplar de todo ente enquanto ente, o que equivale a dizer que ele próprio é intelectualmente todo o ente. Daí resulta que todo conhecimento intelectual é conhecimento de si: o intelecto agente conhece todas as coisas como ele se conhece a si mesmo, por sua própria essência; ele é, pois, enquanto sujeito pensante, a própria identidade entre pensar e pensado. Enquanto fundo da alma, o intelecto agente é também, no rigor dos termos, "imagem (expressiva) de Deus". Sendo essa "expressão" todo o ser da imagem enquanto imagem, o intelecto pode ser dito imagem no sentido preciso em que ele procede de Deus e em que essa procedência é uma expressão do mesmo no outro (expressivum sui ipsius in altero). O estatuto criatural do intelecto agente recebe assim uma definição nova: enquanto imagem de Deus, o intelecto não é criado como uma coisa segundo uma Idéia, seu ser criado é sua autoconstituição, que não é outra senão o conhecimento que ele tem do Princípio do qual ele procede, "procedência" (emanatio) que por sua vez pode ser definida como uma "volta" (conversio) a si mesmo, na medida em que o intelecto se-faz-intelecto no próprio conhecimento de seu Princípio (B. Mojsich, R. Imbach).

Ponto extremo do peripatetismo greco-árabe, a noética especulativa de Dietrich é parcialmente retomada na obra de Mestre Eckhart   (1260-1328).