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cura

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

No uso atual da palavra "cura" prevaleceu a noção de "sanar", em uma conotação eminentemente corporal, ou seja, a cura seria sanar o corpo do que quer que seja que o esteja afetando fisicamente, enquanto corpo. Mesmo quando esta afetação do corpo é devida a alguma pathos - afecção da mente, a cura ainda assim significa sanar esta afecção, por alguma terapia ou algum medicamento que atue sobre o cérebro, ou seja, o corpo.

Heidegger   recuperou um sentido esquecido da palavra "cura", em alemão Sorge:

O sentido fundamental da atividade fática da vida é a cura (curare). No "estar-ocupado-em-algo"está presente o horizonte dentro do qual se move a cura da vida: o mundo que a corresponde em cada ocasião. A atividade da cura se caracteriza pelo trato que a vida fática matém com seu mundo. O até-onde da cura ;e o com-que do trato [Umgang]. O significado do ser real e efetivo e o significado da existência do mundo se funda e se determina a partir de seu caráter: como o assunto mesmo do trato próprio da cura. O mundo está aí como algo do que já sempre e de alguma maneira nos curamos. O mundo se articula, em função das possíveis direções que adota a cura, como mundo circundante [Umwelt], mundo compartilhado [Mitwelt] e mundo do si-mesmo [Selbstwelt]. Correlativamente, o curar-se expressa a preocupação pelos meios de subsistência, pela profissão, pelos prazeres, pela tranquilidade, pela sobrevivência, pela familiaridade com as coisas, pelo saber acerca de, pela consolidação da vida em seus fins últimos. (HEIDEGGER, Ser e Tempo, trad. Marcia Schuback  , 2006 p. 35)

Heidegger relata uma antiga estória que ilustra perfeitamente o sentido de "cura":

"Certa vez, atravessando um rio, Cura viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a dar-lhe forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio Júpiter. A Cura pediu-lhe que desse espírito à forma de argila, o que ele fez de bom grado. Como a Cura quis então dar seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter a proibiu e exigiu que fosse dado o nome. Enquanto Cura e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a Terra (tellus) querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço de seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno como árbitro. Saturno pronunciou a seguinte decisão, aparentemente equitativa: "Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, porém, foi a Cura quem primeiro o formou, ele deve pertencer a Cura enquanto viver. Como, no entanto, sobre o nome há disputa, ele deve chamar-se Homo, pois foi feito de húmus".

Esse testemunho pré-ontológico adquire um significado especial não somente por ver a "cura" como aquilo a que pertence a presença humana "enquanto vive", mas porque essa primazia da "cura" emerge no contexto da concepção conhecida em que o homem é apreendido como o composto de corpo e espírito. Cura prima finxit esse ente possui a "origem" de seu ser na cura. Cura teneat, quamdiu vixerit: esse ente não é abandonado por essa origem, mas, ao contrário, por ela mantido e dominado enquanto "for e estiver no mundo". O "ser-no-mundo" tem a cunhagem da "cura", na medida do ser. Esse ente recebe o nome (homo) não em consideração ao seu ser mas por remeter ao elemento de que consiste (húmus). Em que se deve ver o ser "originário" dessa formação? É isso que Saturno, o "tempo", decide. A determinação pré-ontológica da essência do homem, expressa na fábula, visualizou, desde o início, o modo de ser em que predomina seu curso temporal no mundo. (ibid. p.266-267)

A análise da "cura" (Sorge) em Heidegger, deve respeitar sua profunda co-pertinência ao Dasein, entendido como abertura, clareira do ser, onde justamente a “cura” é uma espécie de convite permanente ao que somos nesta clareira, em que somos (como o ente “fulano”), em que entes são segundo modos de ser (ser-à-mão — Zuhandenheit, ser-subsistente — Vorhandenheit, co-presença — Mitdasein, objeto de arte e até ser-divino); em resumo “a clareira do ser, em que se é”. A constituição fundamental do Dasein é então ser-em-o-mundo, enquanto unidade de momentos estruturais, e jamais “ser” como “ente dentro de um mundo”. No Aí reflete-se o ser como ser-em, como ser-com, como ser-junto dando-se na mundanidade, reflexões que são e estão no mundo; brilho do ser na constituição fundamental ser-em-o-mundo. O “conhecimento” é dado, e não obtido ou adquirido, nesta mesma condição unitária e unitiva de ser-em-o-mundo. Não há qualquer relação sujeito-objeto em que se dê o conhecimento mas apenas seu dar-se nesta condição ser-em-o-mundo.

A partir dessa consideração de Heidegger, abre-se a possibilidade de uma nova compreensão da palavra "cura" em sua conotação mais profunda com soter, portanto com salvação, saúde e sanidade. Estar na mente sã, "ser o que se é", na "autenticidade" que Heidegger afirma, se dá o "curar em, por, a Si Mesmo". Quando se diz que o nome de Jesus significa "Deus salva" fica entendido Deus enquanto Jesus Cristo, Ungido de Deus, Salvador, Ser (em sentido verbal e substantivo) EM QUE aparecemos, COM QUE conhecemos, DE QUE somos feitos.