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Incorruptibilidade

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Simbolismo
Manuel João Ramos: ENSAIOS DE MITOLOGIA CRISTÃ

Nesta história de João Evangelista, a caraterização de João apresenta vários aspectos comuns aos já observados na apresentação do protagonista dos Atos de Tomé. A caraterística de incombustibilidade (João sai incólume da prova do azeite fervente), o motivo da morte e renascimento de um personagem que vê no céu palácios maravilhosos (como o palácio celeste que o irmão de Gundafor vê), e ainda o motivo do túmulo de poderes miraculosos e a ascensão, são outros tantos paralelos que associam as histórias dos dois apóstolos, nos Atos respectivos — para além, naturalmente, da associação metafórica de ambos a uma ave solar (a águia de Patmos, a águia do sonho de Karish). Duas alterações importantes não podem no entanto deixar de ser sublinhadas: ao contrário do que acontece com João, a incombustibilidade de Tomé tem um carácter indicial — isto é, deriva da sua associação corrente ao elemento líquido [1] (e consequentemente, a sua associação a uma ave de voo alto e de características solares é questionável, como se observou); correlativamente, a sua vulnerabilidade é muito maior: enquanto a invulnerabilidade sobrenatural de João ao fogo e ao veneno letal resulta na própria sugestão de uma extrema longevidade sobrenatural que o identifica a Henoch e Elias, e implica uma consubstanciação que mimetiza Jesus ressurreto, Tomé é morto (martirizado) e os destinos da alma e do corpo são, natural e humanamente, separados. A incorruptibilidade sobrenatural do seu corpo morto e as qualidades taumatúrgicas associadas à sua mão, nas versões ocidentais que descrevem o culto indiano de Tomé, são função, como foi anteriormente proposto, de uma «penitência» pela sua incredulidade — cujo objetivo é confirmar e testemunhar, usque ad finem aetatem, a «verdade» da consubstanciação plena de Cristo depois da ressurreição. Note-se, aliás, que devendo-se a incorruptibilidade miraculosa do corpo de Tomé ao fato de ter tocado o corpo de Cristo ressurreto, esse motivo (da incorruptibilidade do corpo) «imposto» a uma personagem de importância emblemática no culto nestoriano sírio e em autores orientais que procuram combinar cristianismo e gnosticismo  , vem negar complementarmente, na narrativa joanina, a tese gnostici-zante da desvalorização da matéria criada (corruptível).

O motivo da túnica maravilhosa dotada do poder de anular os efeitos mortais do veneno — que, devido à possibilidade de permutação entre «fogo terrestre» e veneno, é assimilável à roupa incombustível do Preste João (fabricada por répteis incombustíveis e venenosos) —, assim como a referência a palácios celestes resplandecentes e decorados com pedras preciosas, sugerem que a descrição da Lenda áurea denota uma forte confluência com aspectos centrais da caraterização do Preste João, na Carta. O «tempero» inicial de João no azeite fervente (a «culinária diabólica» do imperador romano) é, na narrativa biográfica, a condição para primeiro poder receber a «revelação» e as visões apocalípticas em Patmos, e para em seguida obter e exibir os seus poderes miraculosos e taumatúrgicos, em Éfeso. A sua capacidade de resistência ao fogo e ao veneno converge no motivo fundamental dos poderes curativos e reanimadores da sua túnica. Tal como Tomé consegue reanimar uma jovem morta envenenada fazendo reverter de novo no corpo do Diabo-serpente o veneno por ele expelido (enganando-o devido ao disfarce da sua aparência humilde e inofensiva), também João, ao ressuscitar os mortos envenenados colocando a sua túnica maravilhosa sobre eles, inverte a ação envenenadora do pontífice pagão Aristodemo e consegue a conversão dos efésios (isto é, diminui, pela conversão à magia cristã, o poder diabólico sobre Éfeso).

Observações

[1Nos Atos de Tomé, a fogueira que aquece os instrumentos de tortura é apagada por uma inundação miraculosa que invade a cidade de Mazdaí; a igreja onde o seu corpo é guardado encontra-se numa ilha geralmente inacessível, nas versões ocidentais sobre o seu culto na Índia.