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quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

A elucidação sistemática da carne, do corpo e de sua relação enigmática nos permitirá abordar o segundo tema de nossa investigação: a Encarnação no sentido cristão. Esta encontra seu fundamento na proposição alucinante de João: “E o Verbo se fez carne” (1,14). A que ponto essa palavra extraordinária vai acossar a consciência de todos os que, desde a irrupção do que se chamará cristianismo, se esforçarão por pensá-la eis o que é testemunhado pela primeira reflexão de Paulo, pela dos evangelistas, dos apóstolos e de seus mensageiros, dos Padres da Igreja, dos hereges e de seus contraditores, dos concílios, em suma: do conjunto de um desenvolvimento espiritual e cultural talvez sem equivalente na história da humanidade. Que numerosas produções intelectuais que compõem essa sequência decisiva da filosofia e da teologia então entremescladas tenham desaparecido — vítimas, aliás, como a maioria dos textos da Antiguidade, de um gigantesco naufrágio –, isso não poderia dissimular sua importância. Esta resulta de que, tornada muito rapidamente quase obsessiva, a palavra em que se diz a Encarnação suscita o inevitável enfrentamento entre os que vão esforçar-se por compreendê-la mesmo que não disponham ainda dos meios para fazê-lo e os que a rejeitam incondicionalmente, como incompatível com sua filosofia, que é nada mais, nada menos, que a filosofia grega!

Os primeiros são os convertidos, os judeus, os gregos, os pagãos de todos os tipos, que querem dar sua inteligência a isso a que acabam de dar fé. Os outros são os “gregos”, que entenderemos a partir de agora como os que, gregos ou não, continuam a pensar como gregos e, por conseguinte, a não poder pensar o que é dito na palavra misteriosa de João.

Por um lado, o Logos grego desdobra sua essência fora do mundo sensível e de tudo o que lhe pertence — tanto a animalidade como a matéria inerte –, esgotando essa essência na contemplação intemporal de um universo inteligível. Que essa contemplação de um inteligível puro torne compreensível o mundo das coisas cujo arquétipo ela fornece não muda nada numa situação fundamental em que a oposição entre o sensível e o inteligível (que vai dominar o pensamento ocidental) tem origem.

Por outro lado, a incompatibilidade radical entre o conceito grego de Logos e a ideia de sua eventual encarnação atinge o paroxismo a partir do momento em que esta reveste a significação que será a sua no cristianismo: a de conferir a salvação. Tal é, com efeito, a tese a que bem se pode chamar “crucial” do dogma cristão — e o princípio de toda a sua “economia”. (HENRY, Michel. Encarnação: uma filosofia da carne. Tr. Carlos Nougué. São Paulo: É Realizações, 2014, p. 14-15)