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Schopenhauer (FM:25-28) – dever

terça-feira 14 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Do mesmo modo que Kant  , por meio dessa petição de princípio, aceitou sem mais, no Prefácio, o conceito de lei moral como dado, indubitável e existente, ele o fez com um conceito proximamente aparentado, o de dever, ao qual foi dada entrada na ética como se este pertencesse a ela, sem prova posterior que o sustentasse. Mas sou obrigado aqui, de novo, a fazer um protesto. Este conceito une-se a seus afins, portanto aos de lei, mandamento, dever e outros que tais e, tomado neste sentido incondicionado, tem sua origem na moral teológica e permanecerá um estranho na filosofia até o momento em que apresente um reconhecimento válido a partir da essência da natureza ou do mundo objetivo. Até então, não reconheço outra origem para ele e para os seus afins a não ser o Decálogo Mosaico. Nos séculos cristãos, a ética filosófica tomou em geral sua forma, inconscientemente, da teológica; por isso esta é essencialmente uma moral que ordena. Assim também a moral filosófica apresentou-se na forma de uma doutrina da [25] prescrição e dos deveres, com total inocência e sem ter ideia de que, para tal, fosse necessário um outro tipo de autorização, supondo antes que esta fosse sua forma própria e natural. Tanto mais inegável seja o reconhecimento por todos os povos, épocas e doutrinas de fé e também por todos os filósofos (com exceção dos materialistas ingleses) da significação ética das ações humanas como sendo metafísica, quer dizer, estendendo-se além da existência fenomênica e repousando na eternidade, tanto menos lhe é essencial ser compreendida na forma do mandar e do obedecer, da lei e do dever. Separados dos pressupostos teológicos dos quais surgiram, estes conceitos perderam, além do mais, todo e qualquer significado e, se se tem a intenção de substituí-los, como Kant, ao falar de dever absoluto e obrigação incondicionada, então oferecem-se palavras como alimento, dando-lhe para digerir uma “contradictio in adjecto”. Cada deve tem todo seu sentido e significado simplesmente referido à ameaça de castigo ou promessa de recompensa. Por isso já diz também Locke  , faz tempo, antes que se pensasse em Kant; “For since it would be utterly in vain, to suppose a rule set to the free actions of man, without annexing to it some enforcements of good and evil to determine his will; we must, wherever we suppose a law, suppose also some reward or punishment annexed to that law?” [1] (On Understanding, livro 2, capítulo 33, parágrafo 6). Cada dever é também necessariamente [26] condicionado pelo castigo ou pela recompensa e assim, para falar a linguagem de Kant, essencial e inevitavelmente hipotético e jamais, como ele afirmou, categórico. Se tais condições forem abstraídas, o conceito de dever fica vazio de sentido. Por isso o dever absoluto é simplesmente uma “contradictio in adjecto”. É simplesmente impossível pensar uma voz que comanda, venha ela de dentro ou de fora, a não ser ameaçando ou prometendo. Mas, assim, a obediência em relação a ela mesma, que, de acordo com as circunstâncias, pode ser esperta ou tola, será sempre, todavia, em proveito próprio e portanto sem valor moral. O caráter totalmente inconcebível e contraditório desse conceito de dever incondicionado que está na base da ética de Kant surge no seu sistema, mais tarde, a saber na Crítica da razão prática, do mesmo modo que um veneno que não pode permanecer mascarado no organismo, mas que tem de finalmente irromper, vindo à luz. Ou seja, aquele dever incondicionado postula a seguir ainda uma condição, e mesmo mais do que uma, a saber, uma recompensa e, para tanto, a imortalidade do que é recompensado e alguém que recompensa. Isto é certamente necessário quando se tomou antes obrigação e dever como conceitos fundamentais da ética, já que estes são essencialmente relativos e só adquirem significado por meio da ameaça de castigo ou da promessa de recompensa. Esta recompensa que é postulada em seguida para a virtude, que só trabalhou de graça aparentemente, mostra-se decentemente velada sob o nome de Soberano Bem, que é a unificação da virtude e da felicidade. Isto na realidade nada mais é do que uma moral que visa a felicidade, apoiada consequentemente no interesse próprio ou [27] eudemonismo, que Kant solenemente expulsou como heterônoma pela porta de entrada de seu sistema e que de novo se esgueirou sob o nome de Soberano Bem pela porta dos fundos. Assim é que se vinga a admissão do dever incondicionado e absoluto, que oculta uma contradição. Por outro lado, o dever condicionado não pode ser certamente um conceito ético fundamental, porque tudo o que acontece visando a recompensa ou o castigo é necessariamente uma ação egoísta e, sendo assim, sem puro valor moral. A partir disso tudo, fica evidente que é preciso uma compreensão grandiosa e imparcial da ética, quando se é honesto em querer realmente fundar a significação eterna do comportamento humano que se estende para fora, acima dos fenômenos.


Ver online : SOBRE Ο FUNDAMENTO DA MORAL [FM]


[1Pois já que seria completamente vão supor uma regia para dirigir as ações livres dos homens sem anexar-lhe algum reforço, através do bem e do mal, para determinar sua vontade, temos de, onde quer que suponhamos uma lei, supor também alguma recompensa ou punição anexada a essa lei.