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Schopenhauer (MVR1:376-379) – decisão

terça-feira 14 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Aparte o fato de a Vontade, como a verdadeira coisa-em-si, ser algo originário e independente, e que o sentimento de sua originariedade e autonomia tem de na autoconsciência acompanhar seus atos, embora aqui já determinados, aparte isso, o engano sobre a liberdade empírica da vontade (em vez da liberdade transcendental, única atribuível a ela), logo, de uma liberdade dos atos individuais, surge da posição separada e subordinada do intelecto em relação à vontade, exposta especialmente no número 3, capítulo 19, do segundo tomo desta obra. De fato, o intelecto experiencia as decisões da vontade apenas a posteriori e empiricamente. Nesse sentido, quando uma escolha se apresenta, ele não possui dado algum sobre como a vontade decidirá, pois o caráter inteligível, em virtude do qual diante de motivos dados [I 343] só UMA decisão é possível, a qual conseguintemente é necessária, não se apresenta acessível ao conhecimento do intelecto — tão-somente o caráter empírico lhe é cognoscível, de forma sucessiva e por atos isolados. Daí aparecer à consciência que conhece (o intelecto) como se, num caso dado, fossem igualmente possíveis para a vontade duas decisões opostas. Porém aqui se passa como no exemplo de uma vara posta em posição vertical, em relação à qual, tirada de seu equilíbrio e oscilando de um e outro lado, disséssemos sobre ela: “Pode cair para a direita ou para a esquerda”. Ora, o “PODE” possui tão-só uma significação subjetiva e em realidade diz “no que tange aos dados conhecidos por nós”. Pois objetivamente a direção da queda já está determinada de um modo necessário, desde o começo da oscilação. De maneira semelhante, a decisão da própria vontade é indeterminada só ao seu espectador, o próprio intelecto, ao sujeito do conhecer, portanto relativa e subjetivamente; por outro lado, em si mesma e objetivamente, a decisão é de imediato e necessariamente determinada em face de cada escolha que se apresenta. Contudo, essa determinação só entra na consciência pela decisão que se segue. Uma prova empírica disso também a temos quando nos encontramos diante de uma escolha difícil e importante, todavia sob uma condição que ainda não entrou em cena e é meramente esperada, de modo que nada podemos fazer até lá, tendo de aguardar passivamente. Ponderamos pelo que decidiremos no momento da aparição das circunstâncias, que nos permitiriam atividade e decisão livres. Na maioria das vezes a ponderação racional, que vê longe, fala antes em favor de uma decisão; já a inclinação imediata, por sua vez, fala em favor de outra. Enquanto, compelidos, permanecemos passivos, o lado da razão aparentemente tende a ganhar a preponderância; entretanto, já antevemos fortemente o quanto o outro lado irá nos atrair quando a oportunidade para agir se fizer presente. Porém, até lá nos esforçamos zelosamente, por fria meditação dos pro et contra, em alumiar o mais claramente os motivos dos dois lados, a fim de que cada um possa com toda a sua força fazer efeito sobre a vontade quando o momento preciso se apresentar, e, com isso, nenhum erro da parte do intelecto desvie a vontade para decidir-se de modo diferente do que faria se tudo fizesse efeito [I 344] equanimemente. Semelhante desdobrar distinto dos motivos em dois lados é, no entanto, tudo o que o intelecto pode fazer em relação à escolha. A decisão propriamente dita é por ele esperada de modo tão passivo e com a mesma curiosidade tensa como se fosse a de uma vontade alheia. De seu ponto de vista, entretanto, as duas decisões têm de parecer igualmente possíveis: isso justamente é o engano da liberdade empírica da vontade. Na esfera do intelecto a decisão entra em cena de modo totalmente empírico, como conclusão final do assunto; contudo, esta se produziu a partir da índole interior, do caráter inteligível, da vontade individual em seu confronto com motivos dados e, por conseguinte, com perfeita necessidade. O intelecto nada pode fazer senão clarear a natureza dos motivos em todos os seus aspectos, porém sem ter condições de ele mesmo determinar a vontade, pois esta lhe é completamente inacessível, sim, até mesmo, como vimos, insondável.

Se um homem, sob condições iguais, pudesse agir ora de uma maneira, ora de outra, então nesse ínterim a sua vontade mesma teria mudado e, por consequência, residiria no tempo, visto que somente neste é possível a mudança; contudo, assim, ou a Vontade teria de ser um mero fenômeno, ou o tempo uma determinação da coisa-em-si. [1] De fato, aquela disputa sobre a liberdade da ação particular, ou seja, sobre o liberum arbitrium indifferentiae, gira propriamente em torno do seguinte problema: se a Vontade reside no tempo ou não. Mas, como Kant   ensina, e toda a minha exposição torna necessário, se a coisa-em-si reside fora do tempo e de toda forma do princípio de razão, segue-se que não apenas o indivíduo tem de agir de maneira igual em situação igual e que cada ação má tem de ser a garantia segura de inumeráveis outras que ele TEM DE levar a cabo, e não PODE deixar da fazê-lo, mas também que, como Kant ainda diz, caso apenas fossem dados, de maneira completa,, o caráter empírico e os motivos, a conduta futura do homem podería ser calculada como um eclipse do sol ou da lua. Igual à natureza, também o caráter é consequente. Cada ação particular tem de ocorrer em conformidade a este, como cada fenômeno tem de ocorrer em conformidade à lei natural. A causa no último caso e o motivo no primeiro são apenas causas ocasionais, como foi [I 345] mostrado no livro segundo. A Vontade, cujo fenômeno é toda a existência e vida do homem, não pode mentir no caso particular. O que o homem quer em geral sempre quererá no particular.

A defesa de uma liberdade empírica da vontade, vale dizer, do liberi arbitrii indifferentiae, está intimamente ligada ao fato de se ter colocado a essência íntima do homem numa ALMA, a qual seria originariamente uma entidade QUE CONHECE, sim, propriamente dizendo, uma entidade abstrata QUE PENSA, e só em consequência disto algo QUE QUER. Considerou-se, assim, a Vontade como de natureza secundária, quando em realidade o conhecimento é de natureza secundária. A Vontade foi até mesmo considerada como um ato de pensamento e identificada com o juízo, especialmente por Descartes   e Espinosa  . De acordo com isso, todo homem teria se tornado o que é somente em consequência de seu CONHECIMENTO. Chegaria ao mundo como um zero-moral, conheceria as coisas no mundo e decidiria ser este ou aquele, agir desta ou daquela maneira. Poderia também, em virtude de novo conhecimento, adotar uma nova conduta, portanto tornar-se outrem. Fora isso, ainda conheceria uma coisa primeiro como BOA e, em consequência, a quereria, em vez de primeiro a QUERER e, em consequência, chamá-la BOA. Porém, de acordo com a totalidade da minha visão fundamental, tudo isso é uma inversão da relação verdadeira. A Vontade é o primário e originário; o conhecimento é meramente adicionado como instrumento pertencente ao fenômeno da Vontade. Conseguintemente, cada homem é o que é mediante sua vontade. Seu caráter é originário, pois querer é a base de seu ser. Pelo conhecimento adicionado ele aprende no decorrer da experiência o QUÊ ele é, ou seja, chega a conhecer seu caráter. Ele se CONHECE, portanto, em consequência e em conformidade à índole de sua vontade, em vez de, segundo a antiga visão, QUERER em consequência e em conformidade ao seu conhecer. De acordo com esta antiga visão, ele precisa apenas ponderar COMO prefere ser, e seria: isto é a liberdade da vontade; logo, ela consiste, propriamente dizendo, no fato de o homem ser sua própria obra, à luz do conhecimento. Eu, contrariamente, digo que o homem é sua própria obra antes de todo conhecimento, e este é meramente adicionado para iluminá-la. Daí não poder decidir ser isto ou aquilo, [I 346] nem tornar-se outrem, mas É de uma vez por todas, e sucessivamente conhece o QUÊ é. Pela citada tradição, ele QUER o que conhece; em mim ele CONHECE o que quer. (p. 376-379)


Ver online : O mundo como vontade e como representação. Primeiro Tomo.


[1Aqui, perceba-se, Schopenhauer faz uma torção conceitual entre Vontade e vontade. Trata-se precisamente daquela fronteira misteriosa da vontade com a Vontade, ou seja, da teoria da convivência entre necessidade e liberdade. Isso me levou, na tradução, a efetuar um trabalho de identificar quando deveria traduzir Wille (vontade) com "v” maiúsculo ou minúsculo, dependendo do contexto, e, assim, manter a opção por mim feita e justificada na nota 8 do livro segundo. (N. T.)