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Safranski: Schopenhauer e a comédia da felicidade

terça-feira 14 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

O que Schopenhauer   recomenda é uma “atitude do como se” (Haltung des Als-ob); em linguagem moderna, poderia ser expressada: “Você não tem mesmo nenhuma chance, mas aproveite o que aparecer!”

Essa “felicidade” (Gluck) relativa — de onde poderia vir?

Schopenhauer enumerava três fontes. Provém, em primeiro lugar, “daquilo que se é” (was einer ist); em segundo, “do que se tem” (was einer hat); e finalmente, “daquilo que se representa” (was einer vorstellt). Era nestas três dimensões — o próprio Ser, o Ter e o Valer — que se representava, segundo Schopenhauer, a comédia da busca da felicidade (Gluckssuche).

As coisas que Schopenhauer mais valorizava, seguindo o estilo da Stoa [Estoicismo], eram a confiança e a segurança. O que podem tirar de mim? (was kann man mir nehmen?) De que dependo? (Wovon hänge ich ab?) Sobre o que tenho o menor controle? (Woruber habe ich die wenigste Macht?)

O “Valer” (Gelten) é o reflexo de minha existência ante os olhos dos outros, portanto é sobre isto que exerço a menor influência. Se esperarmos obter a felicidade através de nossa fama e reputação, estamos construindo sobre terreno incerto. Além disso, é muito fácil que, ao nos esforçarmos para “ser algo para os outros” (fur die anderen etwas sein), acabemos por nos perder de nós mesmos.

O “Ter” (Haben) nos proporciona comodidade e proteção (Bequemlichkeit und Schutz  ), — aqui Schopenhauer fala francamente a respeito de si mesmo — mas isto nos pode ser facilmente roubado ou perdido de outra maneira. Além disso, o Ter possui uma força que pode ser voltada contra nós. No final, é o Ter que nos tem (hat uns das “Haben”). A melhor atitude é “ter como se não tivesse” (haben als man hätte nicht).

Neste sentido, Schopenhauer recomendava uma “retirada” (Ruckzug), isto é, em linguagem militar, encurtar as frentes de combate, de tal modo que a superfície exposta a ataques fosse a menor possível. O “ganho de felicidade” (Glucksgewinn) que nos proporcionava este recuo é que ele “nos devolve a nos mesmos” (wir uns selber zuruckgibt). [1]

O “Ser” (Sein) é o elemento sobre o qual temos maior controle. Devemos descobrir o que somos, porque não podemos escapar de nós mesmos, se bem que este controle é relativo e podemos falhar nesta descoberta. O ideal é criarmos uma espécie de autarquia: tirar o máximo de prazer do que nós somos, das faculdades espirituais, da fantasia, do poder da imaginação criadora (Einbildungskraft), de nosso próprio temperamento e da faculdade de exercer um influxo positivo sobre todas estas características mediante o desenvolvimento consciente da personalidade e o exercício da autoeducação. Naturalmente, teremos de enfrentar o poder de nossa própria vontade que, longe de se achar à nossa disposição, se expressa na forma de desejos do que é externo (als Begehren sich äußernd), arrastando-nos para o mundo das posses e para o mundo dos outros. Para obter a autarquia, precisamos domar o poder da vontade. Temos de fazer predominar dentro de nós o poder da reflexão, porque somente esta capacidade nós dá a sabedoria perante a vida (Lebensklugheit), submetida ao princípio da realidade, uma atitude em que se mistura necessariamente um certo grau de negação da vontade (Beimischung der Willensverneinung). Através destas recomendações, Schopenhauer estava, em certo sentido, estabelecendo este “ponto de vista metafísico-ético mais elevado” (höheren metaphysich-ethischen Standpunkt) que ele, na realidade, pretendia deixar entre parênteses (ausklammern).


Ver online : Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia


[1Arthur Schopenhauer, Parerga und Paralipomena [Suplementos e Crônicas], Volume I, ρ. 428. (ΝΑ).