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Chauí (NR) – DECIFRAR UM HIEROGLIFO?

sábado 11 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Como alcançar o sentido de textos escritos numa língua de que se perderam palavras, expressões idiomáticas e ornatos, em que o sentido de inúmeros vocábulos tornou-se incompreensível e da qual "não dispomos de dicionário, gramática nem retórica"? Com que forças venceremos "o tempo voraz que tudo abole da memória dos homens"? [1] Com essas indagações, que pareceriam indicar um passado inacessível e sob as quais se adivinham os versos de Ovídio, [2] Espinosa   abre uma via de acesso ao pensamento de escritores antigos.

No Tratado teológico-político, instaurando o método moderno de interpretação de documentos históricos - no caso, a Bíblia   -, Espinosa enuncia as condições reguladoras do trabalho interpretativo: conhecimento perfeito da natureza e propriedades da língua em que o texto foi escrito; coleta e reunião de todos os enunciados referentes a um mesmo assunto, o que possibilita o esclarecimento de um escrito obscuro pela comparação com outros que versem sobre a mesma matéria, sem indagar sobre a verdade das coisas e dos fatos relatados mas apenas sobre o verdadeiro sentido do texto; conhecimento de todas as circunstâncias e particularidades da vida, dos costumes e do temperamento dos autores, das personagens e dos destinatários dos textos, épocas e objetivos da redação e da leitura, fortuna dos escritos (variantes, as mãos em que caíram, alterações que sofreram no curso do tempo, acréscimos, cortes e censuras) e a data da composição da forma atualmente conhecida. Gramática, filologia, etnologia e paleografia devem permitir que o texto seja conhecido por e nele mesmo, de tal maneira que as fontes externas para seu conhecimento sejam compreendidas como internas a ele: inicialmente conhecida enquanto exterior ao texto, aos poucos a história vai sendo apreendida como imanente a ele e melhor compreendida por seu intermédio; se ela oferece as razões do documento, este torna inteligível a história que o suscitou, ambos instituindo um campo material e cultural internamente articulado.

A interpretação é sustentada por duas ideias com as quais Espinosa inaugura a exegese propriamente moderna. A primeira delas, de origem erasmiana e subjacente ao texto espinosano, mas tese central do Teológico-político, é a de que as dificuldades para a compreensão da Bíblia não se encontram nos assuntos misteriosos e especulativos de que trataria, pois deles ela não trata de modo algum, e sim na língua e na linguagem em que foi redigida. O segredo das Escrituras encontra-se simplesmente na escrita.

Localizando a dificuldade, Espinosa pode determinar-lhe as causas. A primeira delas, de ordem metafísica e gnosiológica, é a natureza da própria linguagem, que, sendo atividade corporal, é operação imaginativa e, por conseguinte, está sujeita aos equívocos e ambiguidades próprios às imagens. A segunda é histórica, pois "a nação hebraica perdeu todas as suas glórias e pergaminhos", e não pôde impedir a perda de sua língua. Dela não conservou senão alguns fragmentos, e o documento bíblico é apenas uma de suas variantes literárias, que por isso mesmo não contém em si o todo da língua, seja escrita (poesia, contos, cartas, textos políticos oficiais), seja falada (nomes de plantas, frutos e flores, de animais e lugares, de festas e lutos). E, em nossa época, diz o filósofo, não dispomos de dicionário, gramática e retórica dessa língua - "muitos escreveram gramáticas das Escrituras, ninguém as da língua hebraica", lemos no Compêndio de gramática da língua hebraica. Além disso, escrito em épocas diferentes por diferentes autores, para diferentes destinatários e por diferentes motivos, o texto sofreu as alterações históricas da sociedade que o produziu e depois desapareceu, deixando nele seus vestígios. Submetido ao tempo voraz, o documento não pôde ser protegido contra a superstição nem contra a malícia dos que o manipularam, sua única proteção estando no fato de que sua língua era comum aos iletrados, que não podiam lê-lo, e aos doutos, que precisariam de muita astúcia e cautela para pervertê-lo, pois, embora fosse impossível perverter o sentido de uma palavra sem alterar o todo da língua, sempre foi possível perverter o de uma frase e deturpar o pensamento de um autor, "alterando-lhe as frases ou interpretando-as enviezadamente". Protetora e simultaneamente perigosa, a língua, porém, não é um fato unívoco: oferece-se sob múltiplas linguagens, segundo o engenho e a arte de seus escritores, as circunstâncias em que cada relato foi escrito ou reescrito, as condições em que se encontrava o povo ao qual o texto era dirigido, e o próprio estado da língua em cada momento de redação e leitura.

O método interpretativo destina-se, pois, a vencer as dificuldades linguísticas e históricas para que as Sagradas Escrituras voltem a ser o que foram no princípio, isto é, revelações acessíveis a todos e a cada um, uma vez que seria incompreensível e verdadeiramente misterioso que Deus, tendo decidido falar às almas simples e piedosas, houvesse falado hermeticamente e que o livro precisasse de intérpretes autorizados para abrir-se.

Donde a segunda tese, agora explícita, do Teológico-político: podemos ter pleno conhecimento do documento se procedermos em seu estudo exatamente como procedemos na interpretação da Natureza. Esta, como aquele, é também um livro, e ambos são livros hieroglíficos, exigindo o conhecimento do código que permita decifrá-los. Natureza e Escrituras diferem de um outro tipo de livro que nada pede ao leitor, senão o puro trabalho intelectual: o livro inteligível, cujo paradigma é o livro matemático, que se dirige imediata e diretamente à razão por meio de definições, axiomas, postulados e teoremas evidentes, sem exigir que conheçamos a vida e costumes de seu autor, a língua em que escreveu, seus leitores, a fortuna dos textos e a origem do texto canônico atual. Como a Natureza, as Escrituras não oferecem definições de seu objeto, sem as quais permanece desconhecido. Para conhecê-las precisamos proceder como no estudo das coisas naturais: a filosofia natural é precedida pela história natural, que recolhe todos os materiais da experiência, de maneira a chegar a dados e princípios, certos e seguros, dos quais conclui as definições das coisas naturais e alcança suas causas necessárias. Assim também, no estudo das Escrituras, história e filologia, oferecendo dados e princípios certos e seguros, permitem concluir legitimamente "o pensamento dos autores" e com isso, "sem perigo de erro", estabelecer a distinção entre a doutrina universal dos profetas (as revelações) e as simples narrativas (os milagres). Natureza e Escrituras, embora não da mesma maneira nem pelas mesmas razões, tomam-se inteiramente inteligíveis quando a mesma regra interpretativa for seguida para o conhecimento de ambas, qual seja, ex sola ipsa Natura e ex sola ipsa Scriptura: Natureza e Escrituras devem ser conhecidas apenas a partir de si mesmas. Numa palavra, sua inteligibilidade lhes é imanente.

Certamente, a agudeza do filósofo-filólogo que interpreta as Escrituras é determinada pelas exigências do filósofo-geômetra que deduz causas e efeitos na Natureza, e para quem "as demonstrações são os olhos da mente". Tendo em mira a norma matemática, portanto, a do livro inteligível, Espinosa desenvolve, no Tratado da emenda do intelecto e na Ética, uma teoria das definições que aplica em todos os seus escritos, explicando cuidadosamente ao leitor "o pensamento do autor". Busca, por meio de definições nominais, liberar as palavras, tanto quanto possível, da equivocidade imaginativa e, através de definições reais, oferecer a gênese interna e necessária das ideias que expõe e demonstra. Essa elaboração marca a diferença profunda entre o texto hieroglífico e o filosófico, determinando diferenças fundamentais entre as Sagradas Escrituras e a obra filosófica, não só porque as primeiras nascem da imaginação e a segunda é atividade do intelecto, mas também porque as primeiras são fáceis quanto ao assunto e difíceis apenas pelos problemas impostos por sua língua e pelas circunstâncias históricas de sua redação, enquanto a segunda é difícil por seu assunto, embora clara e distinta por sua linguagem. Além disso, os leitores da obra espinosana [3] possuem "dicionário, gramática e retórica" da língua em que ela foi escrita e contam com o trabalho clarificador do próprio filósofo, que nos deixou definições e demonstrações de suas ideias.


Ver online : A Nervura do Real II: Imanência e Liberdade em Espinosa


[1"Omnes fere tempus edax ex hominum memória abolevit" (O tempo voraz que devora todas as coisas tudo abole da memória dos homens), Espinosa, Tratactus theologico-politicus, Gebhardt, iii, p. 106.

[2"Tempus edax rerum, tüque/ invidiosa vetustas/ Omnia destruitis vitiaque dentibus aevi/ Paulatim lenta consumitis omnia mortis" (Ó tempo voraz, e tu,/ invejosa velhice,/ tudo destruís, e tudo o que foi corroído pelos dentes dos anos/ paulatina e lentamente consumis pela morte), Ovídio, Metamorphosis, xv, 234.

[3Os leitores observarão que, no correr deste livro, empregamos três termos para nos referirmos ao pensamento de Espinosa: espinosismo, espinosista, espinosano/espinosana. Espinosismo e espinosista são empregados para significar: 1) as críticas e as imagens pejorativas relativas à obra de Espinosa; 2) as referências, também pejorativas, que autores fazem a outros para indicar sua suposta filiação ao pensamento de Espinosa, seja do ponto de vista teórico, seja do prático; 3) a caracterização da obra de Espinosa como doutrina. Espinosano/espinosana são empregados para indicar o que consideramos expressão do próprio pensamento do filósofo, suas ideias e seu discurso.