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Pascal (P:S22,512) – espírito de geometria e de finura

sábado 11 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Num [espírito de geometria] os princípios são palpáveis mas afastados do uso comum, de sorte que se tem dificuldade para virar a cabeça para esse lado, por falta de hábito: mas, por pouco que se vire, veem-se os princípios plenamente; e seria preciso ter o espírito totalmente falso para raciocinar mal sobre princípios tão patentes que é quase impossível que eles escapem.

Mas, no espírito de finura, os princípios estão no uso comum e diante dos olhos de toda gente. Não adianta virar a cabeça, nem fazer violência; a questão resume-se em se ter boa vista, mas é necessário tê-la boa: pois os princípios estão tão desconexos e em tão grande número que é quase impossível não escaparem. Ora, a omissão de um princípio conduz ao erro; assim é preciso ter a vista bem clara para ver todos os princípios e em seguida o espírito justo para não raciocinar de modo falso sobre princípios conhecidos.

Todos os geômetras seriam então finos se tivessem vista boa, pois não raciocinam erradamente sobre os princípios que conhecem. E os espíritos finos seriam geômetras se pudessem voltar sua vista para os princípios inabituais da geometria.

Isso faz, então, que certos espíritos finos não sejam geômetras

Virar.

é que eles são totalmente incapazes de se virar para os princípios de geometria, mas o que faz com que geômetras não sejam finos é que eles não veem o que está diante deles e que, estando acostumados aos princípios claros e grosseiros de geometria e a não raciocinar senão depois de ter visto e manuseado bem os seus princípios, perdem-se nas coisas de finura, em que os princípios não se deixam manusear assim. Mal se consegue vê-los, pode-se senti-los mais facilmente do que vê-los, têm-se infinitas dificuldades para fazer com que aqueles que não os sentem por si mesmos passem a senti-los. São coisas tão delicadas e tão numerosas que é necessário ter um senso bem delicado e bem claro para as sentir e julgar de modo justo e correto, segundo esse sentimento, sem poder, no mais das vezes, demonstrá-lo por ordem como em geometria, porque não se possuem assim os seus princípios, e seria uma tarefa infinita tentar possuí-los. É preciso ver a coisa num único relance, num único olhar e não por progresso de raciocínio, pelo menos até certo grau. E assim é raro que os geômetras sejam finos e que os finos sejam geômetras, por quererem os geômetras tratar geometricamente essas coisas finas, e se tornam ridículos, querendo começar pelas definições e em seguida pelos princípios, o que não é a maneira de agir nesta espécie de arrazoado. Não é que o espírito não o faça, mas ele o faz tacitamente, naturalmente e sem arteCampo Oculto. Pois a sua expressão ultrapassa todos os homens e o seu sentimento pertence apenas a poucos homens. E os espíritos finos, ao contrário, tendo assim o costume de julgar num único relance de olhos, ficam tão admirados quando se lhes apresentam proposições de que não entendem nada e em que, para entrar, é preciso passar por definições e princípios tão estéreis que não estão habituados a ver assim em pormenores, que isso lhes repugna e os desgosta.

Mas os espíritos falsos nunca são finos nem geômetras.

Os geômetras que só são geômetras têm, pois, o espírito reto, mas desde que lhes expliquem bem todas as coisas por definições e princípios; fora disso, são falsos e insuportáveis, pois apenas são retos sobre os princípios bem esclarecidos.

E os finos que só são finos não conseguem ter a paciência de descer até aos primeiros princípios das coisas especulativas e de imaginação que jamais viram no mundo, e totalmente sem uso.


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