Página inicial > Modernidade > Simone Weil: pesadume e graça

Simone Weil: pesadume e graça

sábado 30 de maio de 2020, por Cardoso de Castro

  

Existe uma tradução deste livro que deixa muito a desejar, publicada pela "ece editora". A começar pelo título, A Gravidade e a Graça, que não corresponde ao francês, La pesanteur et la grâce. Com efeito, é possível traduzir pesanteur por gravidade, mas de fato o termo refere-se àquilo que tem o caráter de pesado ou de parecer pesado, o que implica em um sentido mais profundo do que a noção de gravidade, enquanto força física, pode proporcionar. Weil   nos apresenta em seu livro o conflito entre algo que nos "pesa", nos "torna pesados", nos levando para baixo, e a leveza da graça com seu poder ascensional. Assim, buscando em nosso rico idioma encontrei o termo pouco usado "pesadume", que reúne a noção de peso, carga, carregamento, mas também tristeza, azedume e portanto daquilo que nos deixa "carregados" e "pesados".


nossa tradução

Todos os movimentos naturais da alma são regidos por leis análogas àquelas do pesadume material. A graça somente faz excessão.

É preciso sempre esperar que as coisas se passem conforme o pesadume, salvo intervenção do sobrenatural.

Duas forças reinam sobre o universo: luz e pesadume.

Pesadume. — De uma maneira geral, o que se espera dos outros está determinado pelos efeitos do pesadume em nós; o que deles se recebe está determinado pelos efeitos do pesadume neles. Às vezes isto coincide (por azar), amiúde não.

Por que desde o momento em que um ser humano testifica que tem pouca ou muita necessidade de um outro, este se afasta? Pesadume.

Lear, tragédia do pesadume. Tudo o que se chama baixeza é um fenômeno de pesadume. O termo "baixeza" o indica.

O objeto de uma ação e o nível da energia que a alimenta são coisas distintas.

É necessário fazer tal coisa. Mas onde buscar a energia? Uma ação virtuosa pode rebaixar-se se não há energia disponível ao mesmo nível.

O baixo e o superficial estão no mesmo nível. Ama-se violentamente, mas baixamente: frase possível. Ama-se profundamente, mas baixamente: frase impossível.

Se é verdade que o mesmo sofrimento é bem mais difícil de suportar por um motivo elevado do que por um motivo baixo (as pessoas que permaneciam de pé, imóveis, de uma às oito da manhã para conseguir um ovo, mui dificilmente o teriam feito para salvar uma vida humana), uma virtude baixa é talvez melhor em certos aspectos ao desafio das dificuldades, das tentações e das desgraças, do que uma virtude elevada. Soldados de Napoleão. Daí o emprego da crueldade para manter ou elevar a moral dos soldados. Não esquecê-lo em relação ao enfraquecimento.

É um caso particular da lei que põe geralmente a força do lado da baixeza. O pesadume é como um símbolo disto.

Filas alimentares. Uma mesma ação é mais fácil se o móbil é baixo do que se é elevado. Os móbiles baixos guardam mais energia do que os elevados. Problema: como transferir aos móbiles elevados a energia devida aos móbiles baixos?

Não esquecer que em certos momentos de minhas dores de cabeça, quando a crise crescia, eu tinha um desejo intenso de fazer sofrer um outro ser humano, golpeando-o precisamente no mesmo lugar da fronte.

Desejos análogos são muito frequentes entre os homens.

Várias vezes, neste estado, cedi ao menos à tentação de dizer palavras que ferem. Obediência ao pesadume, o maior pecado. Corrompe-se, assim, a função da linguagem, que é de exprimir as relações das coisas.

Atitude de súplica: necessariamente devo voltar-me para outra coisa que eu mesma, posto que se trata de estar liberada de si mesma.

Tentar esta liberação por meio de minha própria energia, seria como uma vaca que força sobre sua peia e cai assim de joelhos.

Então se libera em si energia por uma violência que degrada ainda mais. Compensação no sentido da termodinâmica, círculo infernal do qual não se pode ser liberado a não ser desde o alto.

O homem tem a fonte da energia moral no exterior, como da energia física (alimento, respiração). Ele a encontra geralmente, e eis porque tem a ilusão — como no físico — que seu ser leva em si o princípio de sua conservação. Só a privação faz sentir a necessidade. E em caso de privação, não pode evitar de se voltar para não importa o que de comestível.

Um único remédio para isso: uma clorofila permitindo de se alimentar de luz.

Não julgar. Todas as faltas são iguais. Não há mais que uma só falta: não ter a capacidade de se alimentar de luz. Pois esta capacidade estando abolida, todas as faltas são possíveis.

"Meu alimento é fazer a vontade Daquele que me envia."

Nenhum outro bem que não seja esta capacidade.

Descer de um movimento onde o pesadume não tem qualquer participação... O pesadume faz descer, a asa faz subir: que asa elevada à segunda potência pode fazer descer sem o pesadume?

A criação é feita do movimento descendente do pesadume, do movimento ascendente da graça e do movimento descendente da graça à segunda potência.

A graça é a lei do movimento descendente.

Abaixar-se é ascender em relação ao pesadume moral. O pesadume moral nos faz cair em direção ao alto.

Uma desgraça muito grande põe um ser humano abaixo da piedade: desgosto, horror e desprezo.

A piedade desce até um certo nível e não abaixo. Como a caridade faz para descer abaixo?

Aqueles que caíram tão baixo têm piedade deles mesmos?

Original

Tous les mouvements naturels de l’âme sont régis par des lois analogues à celles de la pesanteur matérielle. La grâce seule fait exception.

Il faut toujours s’attendre à ce que les choses se passent conformément à la pesanteur, sauf intervention du surnaturel.

Deux forces règnent sur l’univers : lumière et pesanteur.

Pesanteur. - D’une manière générale, ce qu’on attend des autres est déterminé par les effets de la pesanteur en nous ; ce qu’on en reçoit est déterminé par les effets de la pesanteur en eux. Parfois cela coïncide (par hasard), souvent non.

Pourquoi est-ce que dès qu’un être humain témoigne qu’il a peu ou beaucoup besoin d’un autre, celui-ci s’éloigne ? Pesanteur.

Lear, tragédie de la pesanteur. Tout ce qu’on nomme bassesse est un phénomène de pesanteur. D’ailleurs le terme de bassesse l’indique.

L’objet d’une action et le niveau de l’énergie qui l’alimente, choses distinctes.

Il faut faire telle chose. Mais où puiser l’énergie ? Une action vertueuse peut abaisser s’il n’y a pas d’énergie disponible au même niveau.

Le bas et le superficiel sont au même niveau. Il aime violemment mais bassement : phrase possible. Il aime profondément mais bassement : phrase impossible.

S’il est vrai que la même souffrance est bien plus difficile à supporter par un motif élevé que par un motif bas (les gens qui restaient debout, immobiles, de une à huit heures du matin pour avoir un œuf, l’auraient très difficilement fait pour sauver une vie humaine), une vertu basse est peut-être à certains égards mieux à l’épreuve des difficultés, des tentations et des malheurs qu’une vertu élevée. Soldats de Napoléon. De là l’usage de la cruauté pour maintenir ou relever le moral des soldats. Ne pas l’oublier par rapport à la défaillance.

C’est un cas particulier de la loi qui met généralement la force du côté de la bassesse. La pesanteur en est comme un symbole.

Queues alimentaires. Une même action est plus facile si le mobile est bas que s’il est élevé. Les mobiles bas enferment plus d’énergie que les mobiles élevés. Problème : comment transférer aux mobiles élevés l’énergie dévolue aux mobiles bas ?

Ne pas oublier qu’à certains moments de mes maux de tête, quand la crise montait, j’avais un désir intense de faire souffrir un autre être humain, en le frappant précisément au même endroit du front.

Désirs analogues, très fréquents parmi les hommes.

Plusieurs fois dans cet état, j’ai cédé du moins à la tentation de dire des mots blessants. Obéissance à la pesanteur. Le plus grand péché. On corrompt ainsi la fonction du langage, qui est d’exprimer les rapports des choses.

Attitude de supplication : nécessairement je dois me tourner vers autre chose que moi-même, puisqu’il s’agit d’être délivré de soi-même.

Tenter cette délivrance au moyen de ma propre énergie, ce serait comme une vache qui tire sur l’entrave et tombe ainsi à genoux.

Alors on libère en soi de l’énergie par une violence qui en dégrade davantage. Compensation au sens de la thermodynamique, cercle infernal dont on ne peut être délivré que d’en haut.

L’homme a la source de l’énergie morale à l’extérieur, comme de l’énergie physique (nourriture, respiration). Il la trouve généralement, et c’est pourquoi il a l’illusion - comme au physique - que son être porte en soi le principe de sa conservation. La privation [10] seule fait sentir le besoin. Et, en cas de privation, il ne peut pas s’empêcher de se tourner vers n’importe quoi de comestible.

Un seul remède à cela : une chlorophylle permettant de se nourrir de lumière.

Ne pas juger. Toutes les fautes sont égales. Il n’y a qu’une faute : ne pas avoir la capacité de se nourrir de lumière. Car cette capacité étant abolie, toutes les fautes sont possibles.

« Ma nourriture est de faire la volonté de Celui qui m’envoie. »

Nul autre bien que cette capacité.

Descendre d’un mouvement où la pesanteur n’a aucune part... La pesanteur fait descendre, l’aile fait monter : quelle aile à la deuxième puissance peut faire descendre sans pesanteur ?

La création est faite du mouvement descendant de la pesanteur, du mouvement ascendant de la grâce et du mouvement descendant de la grâce à la deuxième puissance.

La grâce, c’est la loi du mouvement descendant.

S’abaisser, c’est monter à l’égard de la pesanteur morale. La pesanteur morale nous fait tomber vers le haut.

Un malheur trop grand met un être humain au-dessous de la pitié : dégoût, horreur et mépris.

La pitié descend jusqu’à un certain niveau, et non au-dessous. Comment la charité fait-elle pour descendre au-dessous ?

Ceux qui sont tombés si bas ont-ils pitié d’eux-mêmes ?


Ver online : LA PESANTEUR ET LA GRÂCE