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Schopenhauer (2005:414-415) – vida - tragédia e comédia

sexta-feira 3 de janeiro de 2020, por Cardoso de Castro

  

A vida do indivíduo, quando vista no seu todo e em geral, quando apenas seus traços mais significativos são enfatizados, é realmente uma tragédia; porém, percorrida em detalhes, possui o caráter de comédia, pois as labutas e vicissitudes do dia, os incômodos incessantes dos momentos, os desejos e temores da semana, os acidentes de cada hora, sempre produzidos por diatribes do acaso brincalhão, são puras cenas de comédia. Mas os desejos nunca satisfeitos, os esforços malogrados, as esperanças pisoteadas cruelmente pelo destino, os erros desafortunados de toda a vida junto com o sofrimento crescente e a morte ao fim, sempre nos dão uma tragédia. [1] Assim, como se o destino ainda quisesse adicionar à penúria de nossa existência a zombaria, nossa vida tem de conter todos os lamentos e dores da tragédia, sem, no entanto, podermos afirmar a nossa dignidade de pessoas trágicas; ao contrário, nos detalhes da vida, desempenhamos inevitavelmente o papel tolo de caracteres cômicos.

No entanto, por mais que grandes e pequenas vicissitudes preencham qualquer vida humana e sempre a mantenham em constante desassossego e excitação, não conseguem esconder a inadequação da vida em satisfazer o espírito, nem escondem o vazio e a superficialidade da existência, muito menos o tédio que sempre está preparado para ocupar qualquer espaço deixado livre pela preocupação. Daí advém que o espírito humano, não contente o bastante com as preocupações, ansiedades e cuidados que lhe são postos pelo mundo real, criou ainda para si um mundo imaginário na figura de milhares de superstições, as mais variadas, ocupando-se com ele das mais diferentes maneiras, dispendendo desse modo tempo e força tão logo o mundo real lhe concede repouso, já que de modo algum estava preparado para esse repouso. É também originariamente o que ocorre com a maioria dos povos cuja vida é facilitada pela benignidade do clima e do solo: antes de tudo os hindus, depois os gregos e os romanos, mais tarde os italianos e os espanhóis etc. — Demônios, deuses e santos são criados pelos homens segundo sua própria imagem e semelhança. A eles são oferecidos incessantemente sacrifícios, preces, decorações de templos, promessas e seu cumprimento, peregrinações, homenagens, adornos etc. Seu culto se confunde em toda parte com a realidade, até o ponto de eclipsá-la. Quaisquer acontecimentos da vida são considerados como intervenções daqueles seres. O comércio com eles ocupa metade do tempo de vida, e mantém constantemente a esperança, tornando-se, pela excitação do engano, amiúde mais interessante do que o comércio com os seres reais. Trata-se aí da expressão, do sintoma relacionado à dupla necessidade humana, uma por ajuda e amparo, outra por ocupação e passatempo. Se, de um lado, com frequência o homem trabalha contra a primeira necessidade, na medida em que, na ocorrência de acidentes e perigos, em vez de empregar tempo e força preciosos para evitá-los, entrega-se a preces e sacrifícios, por outro, serve tanto melhor à segunda necessidade mediante aquele fantástico intercurso com um mundo onírico de espíritos: sendo este o ganho nada desprezível de todas as superstições.


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[1Importa aqui sublinhar, para que o leitor absorva toda a densidade do texto, que “tragédia” se escreve em alemão Trauerspiel, ou seja, ao pé da letra, jogo (Spiel) enlutado, triste (Trauer), enquanto "comédia” se escreve Lustspiel, jogo (Spiel) prazenteiro (Lust). Ou seja, tanto no luto quanto no prazer, o destino joga”, brinca com suas presas; portanto, o luto ou o prazer envolvido nessa brincadeira — pois também se pode traduzir Spiel por brincadeira — é uma carga que recai exclusivamente no plano individual, enquanto o destino, nos dois casos, brinca (Spiel) com suas, por assim dizer, marionetes, (N. T.)