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Eco Talismã

segunda-feira 28 de março de 2022

      

O medieval só conhecia um modo para modificar a ordem   das coisas naturais: o milagre  . A arte ajudava a natureza a aperfeiçoar o próprio curso, mas não podia nem modificar nem desviar   suas finalidades. Diferente é o objetivo da magia   astral do Renascimento, e disso temos um exemplo - com claras implicações estéticas - nas práticas talismânicas de Marsilio Ficino  .

Yates   (1964) supõe que tais práticas tenham sido sugeridas a Ficino por um texto mágico árabe do século XII, que circulou na Idade Média em uma versão latina: Picatrix. Segundo Couliano   (1984), uma outra fonte medieval de Ficino seria o De radiis, do árabe Al Kindi (século IX): não só cada estrela  , mas todo elemento   emana raios   que se modificam graças às diferentes relações entre estrelas ou outros elementos e objetos influenciados. Estamos diante de uma ininterrupta ligação de influências (vistas aqui como influências luminosas, de tipo físico, mas que no platonismo   renascentista se tornarão ligação de amor) que unifica o universo  , de alto a baixo e vice-versa. Quando o homem   concebe com a imaginação   uma coisa material, tal coisa adquire uma existência real, segundo a espécie, no espírito imaginário. Tal espírito emite, assim, raios que movem as coisas exteriores exatamente como a coisa da qual ele é imagem. Desse modo, portanto, a imagem concebida no espírito harmoniza-se em espécie com a coisa produzida em ato, com o modelo da imagem (De radiis, V.).

Neste âmbito é também retomada a teoria   do spiritus, um princípio que compenetra a matéria de tal modo que as virtudes dos corpos superiores são a forma dos inferiores e a forma dos inferiores é feita de um material conjuminado com as virtudes dos superiores. Uma das fontes da magia astral é seguramente o De somniis, de Sinésio (século V), traduzido por Ficino. A simpatia cósmica acontece porque a alma   contém a marca   ideal dos objetos sensíveis e é conhecível em virtude de   um princípio sintetizador que, como um espelho   de duas faces, reflete ao mesmo tempo os objetos sensíveis e os arquétipos eternos, permitindo sua comparação. Há, assim, uma espécie de território neutro e comum no qual o mundo interno e o mundo externo se encontram e se descobrem iguais.

Ora, os talismãs ficinianos - pelo que se pode inferir   das páginas do De vita   coelitus comparando - são objetos construídos pela arte humana, que agem sobre as entidades superiores em virtude de uma semelhança  . Segundo Picatrix, o Sol   apresentar-se-á como um rei coroado entronizado, com o caráter mágico do sol sob os pés; Vénus será uma mulher de cabelos soltos que cavalga um cervo, tem na mão direita uma maçã, na esquerda flores  , e está vestida de branco. E não são diferentes os critérios fornecidos para estabelecer semelhança e simpatia entre certas pedras, flores e animais   com os vários planetas.

Para Ficino, qualquer objeto material ao ser posto em contato com as coisas superiores é atingido imediatamente por um influxo   celeste. E a prova clássica, extraída dos textos do Corpus   hermeticum, é que os sacerdotes   egípcios e os magos evocavam os deuses, manipulando estátuas animadas construídas a sua imagem e semelhança.

Um talismã (mas Ficino fala sempre de "imagens") é um objeto material no qual foi introduzido o espírito de uma estrela. Imagens diferentes podem permitir que se obtenham curas, saúde, força física  . Junto com os talismãs, Ficino aconselha o canto   dos hinos órficos, segundo uma melodia de certo modo análoga à música das esferas planetárias, na tradição pitagórica.

Mas o pensamento   de Pitágoras, assim como chegou até nós e assim como o desenvolveu e transmitiu Boécio, baseava-se no fato, incontestável, de que determinadas melodias e determinados modos   musicais podem suscitar tristeza  , alegria  , excitação ou calma  . Para Ficino, por sua vez, a magia órfica é paralela à magia talismânica e age sobre os astros.

O De vita coelitus comparando é repleto de instruções sobre como utilizar talismãs, como alimentar-se com plantas em simpatia com certos astros, como celebrar cerimônias mágicas usando perfumes, cantos adequados e vestes de cores apropriadas aos astros que se quer influenciar, ou dos quais se solicita a influência benéfica. O Sol pode ser solicitado vestindo-se roupas douradas, usando flores relacionadas com ele, como heliotrópios, mel amarelo, açafrão, cinamomo. São animais solares o galo, o leão e o crocodilo. A influência de Júpiter pode ser atraída graças à zirconita, à prata, ao topázio, ao cristal, às cores verdes e brônzeas.

A estética como norma de vida
Ioan Couliano (1984) vê na magia ficiniana uma técnica para o controle pessoal, capaz de colocar o mago em estado   de tensão ou distensão, como acontece com os monges orientais, que meditam por horas e horas pronunciando um mantra e por meio dessa concentração encontram uma disposição   de espírito relaxada e serena, ou como acontece com as técnicas corporais da ioga  . De fato, faz parte da prática ficiniana uma série de conselhos referentes a uma dieta sadia, a passeios em lugares amenos de ar doce e puro, à prática da higiene pessoal, ao uso de substâncias como o vinho   e o açúcar. Trata-se de purgar o espírito do homem de suas sujeiras para torná-lo mais semelhante ao espírito do mundo e, portanto, mais celeste.

Porém devemos pensar em tais ritos também como manifestações artísticas, feitas por estetas que cultivam com amor o próprio corpo, a agradabilidade do próprio ambiente e dos objetos que o circundam. Há um componente estético nessa disposição para a meditação das belas figuras e para o canto de agradáveis melodias. O mago neoplatônico é mais enamorado das harmonias terrenas que dos mundos infernais. A magia parece permitir, mais do que um tenebroso domínio do sobrenatural, um agradável equilíbrio natural  .

Vimos que Ficino parece privilegiar o reflexo da ideia celeste na matéria que ela forma. Mas - e se trata de um outro aspecto do novo paradigma   renascentista - esta concepção do sábio que procura tornar-se semelhante a Deus  , penetrando em seus mistérios, tem como efeito colateral uma revalorização do corpo e dos prazeres da vida. Curiosa contradição: o teórico medieval pode gastar páginas e páginas sobre a beleza da natureza, mas não chegará à conclusão de que também o modo de tratar o próprio corpo e o próprio ambiente fazem parte de seu ideal de beleza. O teórico do Renascimento, ao contrário, parece voltado para a descoberta de uma ideia desmaterializada de beleza, mas de fato comporta-se como se o problema estético não dissesse respeito somente à contemplação do mundo, mas também à própria prática cotidiana, ao cuidado do próprio corpo e dos lugares em que agradavelmente, com equilíbrio mas com plenitude   dos sentidos, põe-se a celebrar a própria aventura terrena.

Longe de evocar os espíritos dos defuntos para dar espetáculo, como o necromante descrito por Benvenuto Cellini, longe de voar   no ar e encantar homens e animais, como as feiticeiras tradicionais, longe até de dedicar-se, como Henrique Cornélio Agrippa  , à pirotécnica ou, como o abade Tritêmio, à criptografia, o mago de Ficino é um personagem inofensivo, cujos hábitos não têm nada de repreensível ou de escandaloso aos olhos de um bom cristão. É certo que ao visitá-lo - a não ser   que ele considere pouco recomendável nossa companhia, fato este muito provável - ouvir  -se-á a proposta de acompanhá-lo em seu passeio cotidiano. Furtivamente, para evitar encontros importunos, nos conduzirá a um jardim encantado, lugar ameno onde os raios do Sol encontram, no ar fresco, só os perfumes das flores e as ondas pneumáticas emanadas pelo canto dos pássaros. Poderá acontecer também que nosso teurgo, envolto em sua veste   de lã branca exemplarmente limpa, comece a inspirar e a expirar até que, vislumbrada uma nuvem, voltará para casa  , preocupado com a ideia de pegar um resfriado. Para atrair a benéfica influência de Apolo   e das Graças celestes tocará a lira, depois disso se acomodará em uma mesa frugal e consumirá, além de um pouco de verdura cozida e uma ou outra folha de salada, dois   corações de galo para fortalecer o seu próprio, e um cérebro de carneiro para reforçar o próprio cérebro. Único luxo, ele se permitirá uma colherada de açúcar branco e um copo de bom vinho, mesmo que este último, observado de perto, revele conter um pó insolúvel no qual será reconhecível uma ametista triturada, que lhe atrairá, sem falta, os favores de Vénus. Notaremos que sua casa é tão limpa quanto suas vestes, e que, ao contrário da maior parte de seus concidadãos, os quais não seguem seus bons hábitos, nosso teurgo lava-se sistematicamente duas vezes ao dia.

Nem causará espanto   que este indivíduo  , muito atento a não criar embaraços a ninguém, e além disso limpo como um gato, não incorra na ira   das autoridades, sejam laicas ou religiosas. Foi tolerado na medida da tolerância, ou, antes, da indiferença, da qual ele mesmo dá prova no confronto   de seus semelhantes menos evoluídos, cujo pneuma   nunca foi tão transparente quanto o seu. (Ioan Couliano 1984; tr. it. pp. 24-25)