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Grassi: II. Linguagem semântica arcaica

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

  

1. A linguagem da sibila de cumae

Nossas discussões anteriores nos levaram a uma dupla conclusão: a linguagem racional, demonstrativa, explicativa não é originária: ela tem suas raízes na linguagem semântica e referente, que é extraída diretamente da fonte de "sinais" arcaicos. Para descobrir a estrutura dessa linguagem originária e sua relação com a "imagem", analisaremos agora a essência da linguagem pré-filosófíca.

Até agora não foi esclarecida a relação entre causas últimas, axiomas e "imagens". No domínio do comportamento puramente animal, causas "referentes" ou "indicativas" tanto podem ser imagens quanto sons, odores ou gostos, i. é., qualquer percepção sensorial. Há, portanto, a seguinte pergunta a ser feita: virão os sinais visuais ao primeiro plano com evidência especial no nível da linguagem semântica? Para examinar a estrutura da linguagem semântica, axiomática sob este aspecto, recorreremos novamente ao testemunho da poesia, particularmente à interpretação de dois textos diferentes. A primeira pergunta que surge nesse contexto é onde, na linguagem pré-filosófica, podem-se encontrar exemplos de uma forma arcaica de expressão no sentido que temos em mente; é preciso mostrar a continuidade existente entre o conhecimento pré-filosófico e filosófico da peculiaridade do discurso arcaico, a fim de descobrir o significado exato daquilo que afirmamos ser a sua estrutura "pictórica" básica.

Dissemos que a linguagem racional tem suas bases numa linguagem pré-racional, arcaica, na qual o elemento pictórico, e com ele o elemento "visual", tem papel preponderante. Como resultado, uma linguagem desse tipo deve, por razões muito fundamentais, mais do que por razões ’literárias", utilizar-se da metáfora como uma transferência de expressões que são tomadas do domínio dos sentidos e, especialmente, do "visual".

Nossa pergunta é: qual é a relação entre a linguagem semântica e a imagem e como a linguagem semântica é determinada pelo elemento pictórico, mesmo no seu conteúdo pré-filosófico?

Para examinar a estrutura dessa linguagem no âmbito pré-filosófico, voltamo-nos primeiro ao episódio descrito no Livro VI da Eneida de Virgílio, onde Enéas consulta a Sibila de Cumae. Aqui há um exemplo concreto de discurso arcaico, alusivo e visionário. Ele é composto por um poeta cujas firmes raízes se encontram nas tradições religiosas antigas; Virgílio interpreta esse discurso conscientemente como uma manifestação do poder direto do divino, do transcendente.

Enéas encontra a Sibila de Cumae, depois da destruição de Troia, ao fim de longa viagem, quando pisa pela primeira vez a terra prometida da Itália. Esse encontro encerra a primeira metade da epopeia e irá esclarecer a Enéas definitivamente sobre a sorte futura do seu povo. Os seis livros seguintes da epopeia têm por cenário o Lacio, onde Enéas deverá lutar pelo cumprimento da promessa que lhe fora feita. Sua chegada à Itália traz consigo uma mudança no destino da terra: o começo da História Romana. Para a nossa interpretação, é muito elucidativo ver em que ponto, segundo a concepção de Virgílio, essa história teria começado originalmente. Mentes modernas presumiriam ter ela brotado de uma corrente de acontecimentos, cujas origens levam até o infinito, segundo a habilidade ou inabilidade de cada indivíduo. Polibio, por exemplo, de acordo com o seu conceito cíclico da história, fala de um império que deve passar pelos processos fatais da ascensão, grandeza e queda. Para Virgílio, no entanto, a história de Roma tem suas raízes na profecia, no mito, no sagrado. Com isto ele atesta o seu nascimento no objetivo, no eterno.

Primeiro há uma descrição do local sagrado: a gruta da Sibila. Está entalhada na montanha de Cumae, perto de onde Enéas enterrou seu companheiro Miseno, antes de sua descida ao Inferno. Sobre a gruta se eleva o grande templo de Apoio onde, segundo a lenda, Dédalo depositou suas asas como uma oferenda ao deus. Um lugar sagrado, imerso em tradições sagradas. Tudo isto deve ser levado em conta para se compreender o tom reverente com que Virgílio fala deste lugar:

Abóboda gigante, escavada no coração das montanhas eubeas,
centenas de entradas para ela conduzem por centenas de
portais,
murmuram e sussurram cem vezes a resposta da Sibila.

O encontro com a Sibila pertence ao mundo dos sonhos. O troiano Heleno havia aconselhado Enéas a consultar a Sibila. Ela já havia aparecido em sonho ao pai dele, Anquises, profetizando sua descida ao Inferno: de lá Anquises mostrará ao seu filho o nascimento da futura nação romana, numa espécie de cortejo heróico. Deve-se notar aqui que, até os dias de Platão, somente uma sibila é mencionada, enquanto que, a partir de Aristóteles, aparecem diversas, e em número cada vez maior de lugares, na Ásia Menor, na Grécia e finalmente na Itália do Sul, reivindicando oráculos sibilinos. A primeira descrição de uma sibila vem de Heráclito: "A sibila que, por boca " furiosa, diz palavras sem riso, sem pintura e não ungidas, alcança com sua voz um milênio, pois ela é impelida pelo deus".

No texto segue agora a revelação divina (epifânia) de Apoio, que toma posse da Sibila:

Ao aproximar-se do limiar, clama a sacerdotiza: ’agora, agora/Se exige a sentença: o deus, é o deus!’/Ela clama sob o portal e ao mesmo tempo/Seu semblante muda de cor e se transforma,/Selvagemente se arrepia o cabelo em trançado; o receio sufoca sua garganta/A loucura dilata o peito angustiado: ela parece maior/E extraterrena, sua palavra: envolta pelo sopro do deus próximo.

Norden, contrastando com R. A. Schröder, traduz o primeiro verso "Ventum erat ad limen" como "estava no limiar em frente à porta". Esta tradução oculta o verdadeiro efeito do texto latino, onde o acento recai essencialmente sobre limes, não há menção de porta. Limes significa a Unha de demarcação invisível, intangível e incomensurável entre o espaço sagrado e o profano; o "limiar" aqui é acesso e transição ao locus religiosus; significa o abandono do âmbito do profano e a volta ao sagrado. Consequentemente não pode ser meramente caracterizado por um lugar concretamente identificável (como "porta"). O lugar, concretamente dilatado, se refere a uma continuidade quantitativa entre o "exterior" e o que se passa dentro do local sagrado. Qualitativamente, no entanto, uma mudança radical tem lugar no limiar do local sagrado. Aqui "limiar" é o limite, onde ocorre a "metabolê", a mudança repentina, o impacto instantâneo do sagrado, o não-histórico, o fatídico, em contraste com o histórico e o individual. Para Virgílio, o termo limes conota a separação invisível entre o cotidiano e o racional, e o a-racional originário.

A sibila cai em êxtase, que se manifesta através da eclosão da rabies, da mania. Nessa condição extra-humana ela deixa de ser ela mesma, um "indivíduo" e se torna apenas um órgão do divino, uma anunciadora do objetivo, do elementar. Aqui, onde a anunciação radica na presença intempestiva de um instante que tudo abrange, o "visto" não se desenrola na sucessibilidade do tempo, assim como não há lugar para temas capazes de, por si só, revelarem causas e construírem um mundo histórico como seu próprio trabalho "causai". Por isso, mania ou "rabies" não é um estado de espírito doentio ou confuso, mas uma introspecção a-lógica, característica do acesso ao originário no fundo, é claridade no mais alto grau, que é confirmada pelo mito que descreve Apoio como o deus da loucura e da ordem. Este mito sobreviveu até o fim da Renascença.

A revelação divina de Apoio é seguida da oração de Enéas. A própria sibila exorta os troianos à oração. O deus somente se revela àqueles que se voltam para ele. Já na oração de Enéas, o passado troiano se vincula ao presente e ao futuro. O herói implora um oráculo verbal, pois na maioria das vezes a sibila só deixa suas profecias em folhas de palmeiras; ela as põe em ordem e as deixa na gruta. Mas se uma rajada de vento as revolve, seus pronunciamentos se perdem.

Esta relação entre mania e "mantike" (profecia) prova uma longa tradição. Platão distingue "mantike" da simples adivinhação: "Assim como ’mantike’ é mais completa e mais apreciada do que a simples adivinhação . . . , os antigos testemunham que a mania é mais preciosa do que o discernimento, pois uma vem do deus, e a outra do ser humano". A sibila se torna instrumento e serva do deus e só é capaz de profetizar quando se submete completamente a ele.

Assim a sibila pronuncia o oráculo:

Oh! tu que finalmente escapaste dos perigos indescritíveis
do mar,
piores esperam-te na Hespéria. Embora os troianos venham
à terra lavinia: alivia teu peito da preocupação.
Eles, porém, lamentam tua vinda: guerra, guerra e desastres
eu profetizo: cheio de sangue e de cadáveres vejo o Tibre.
Nem tendas de Aqueus, nem Chanto ou Simões
te faltarão: no Latium aguarda um outro Aquiles,
Filho de uma deusa, ele também. Aqui também Juno fica
cruelmente perto dos teucros: nenhum lugar, nenhum povo
da Itália
do qual não te aproximes como pedinte, inquieto e
necessitado.
Mas uma vez uma mulher provocará a desgraça, a estranha,
Saque de Troia e hóspede de Troia.
Nunca fujas da necessidade, não, enfrenta-a mais
corajosamente
do que a tua sorte o deseja. O caminho para a salvação, o
primeiro,
abre-se para ti, lá, onde nunca pensaste: a cidade
dos aqueus.

Os primeiros versos, introdutórios (83-86), não demonstram coerência lógica. Os pronunciamentos parecem contradizer-se. Um vislumbre de esperança é imediatamente destruído pela ameaça de desastre iminente. Enéas escapou de perigos imensos ("O tandem magnis pelagi defuncte periclis" — "Oh, tu que finalmente escapaste dos perigos indescritíveis do mar"), mas novo sofrimento o aguarda ("sed terrae graviora manent"). O lugar desses sofrimentos é indicado mais precisamente ("in regna lavini Dardanidae venient" — "Embora os troianos venham à terra lavínia"). Embora o perigo iminente não deva preocupar Enéas ("mitte hanc de pectore curam" - "alivia teu peito da preocupação"), já a parte seguinte da profecia nega a precedente (sed et non venisse volent — "eles, porém, lamentam a tua vinda"). Todas essas sentenças surgem abruptamente, sem reparo, sem coerência. Analisadass "racionalmente", elas pareceriam negarem-se parcialmente umas as outras, por contradição. Poder-se-ia objetar que essas contradições não têm significado essencial, pois a história de Roma, no decorrer do tempo, esclarecerá "logicamente" todos esses pronunciamentos e alusões. Mas isto significa omitir a essência da profecia. Em primeiro lugar, ela nunca oferece "explicações" para o que prediz. Segundo, explicações e razões para os fatos previstos somente são fornecidos mais tarde, pela história, pois somente na história deve ser justificado e ordenado, de forma cronológica e racional, aquilo que na profecia existe, simultânea e inexplicadamente. Em outras palavras, na profecia desaparecem tempo e sequência; processos de qualquer espécie são eliminados, e a dimensão remanescente é o presente, o "visto", o simultâneo no tempo e no espaço.

Na segunda parte da profecia (86-94), as declarações parecem mais diretas ainda; os acontecimentos são "vistos" imediatamente, vêm à luz abruptamente ("Bella, horrida bella ... cerno"). Em lugar de qualquer indução ou dedução lógica, que pudesse ligar os acontecimentos, prevalece a "visão", o puro ato de ver. Nesta parte da profecia, aparece um outro elemento essencial: a abolição do tempo que ofusca o passado e o futuro, típica da fala da sibua. Diz Virgílio: "Non Simões tibi, nec Chanto ... defuerint" — Nem Simões e nem Chanto te faltarão". Isto quer dizer que o passado troiano e o futuro no Lacio estão na realidade fundidos na presença da revelação, pela abolição inexplicável do tempo. Para nós, seres humanos que vivemos dentro da história, aquilo que se mostra na ofuscação de duas realidades (passado e futuro) só mais tarde se torna claro e inteligível, através do tempo. De repente, os nomes Simões e Chanto não designam apenas os dois rios troianos, mas também indicam os rios itálicos Numico e Tibre; igualmente o nome Aquiles se refere ao herói latino Turnus, e a frase "coniunx hospita" alude tanto a Helena quanto a Lavínia, a futura mulher de Enéas.

Os últimos versos revelam o caráter alusivo e indicativo como a característica que determina a essência da linguagem profética. Uma ordem é dada, uma missão é atribuída. No lugar das conexões logicamente explicativas, que não estão conformes com o originário, aparece não somente a imagem, a visão, mas também a direção a ser tomada. Essa combinação explica a afinidade, tão íntima na Antiguidade, entre profecia, linguagem semântica e sonho.

Para dar mais uma ilustração da peculiaridade dos acontecimentos, segundo a visão da sibila, poderemos contemplar nosso problema à luz da possibilidade e da necessidade. Possibilidades só ocorrem no mundo dos acontecimentos humanos, profanos, desde que os eventos sucedam em termos de ainda-não, não-mais, ou agora, enquanto que o temporal-humano "agora" é caracterizado pela sua mudança imediata para o não-mais, para o "im-perfectum". Daí a necessidade, na esfera histórica, de renovar o presente constantemente, de modo que o que foi realizado não caia no passado ("im-perfectum") como algo não realizado ou incompleto; o passado só vive na visão do presente. O acontecimento "visto", no entanto, ao qual se refere a manifestação da sibila, não tem caráter histórico, pois os acontecimentos que ela vê não envolvem "possibilidade" mas apenas "necessidade". Eles se relacionam com um presente que não é transitório e que não pode, portanto, conter possibilidades; trata-se de uma realidade consumada.

A linguagem semântica da sibila é entremeada de metáforas e imagens que ocorrem de forma impressionante toda vez que a profe-tisa deseja tornar inteligível o significado de algo que tenha visto diretamente. A metáfora substitui o esclarecimento racional. Ela torna possível a relação imediata entre os conceitos mais remotos. A unidade, a síntese entre as diferentes imagens é conseguida por "associação", por uma repentina introspecção das similaridades. Este tipo de introspecção corresponde à faculdade que os gregos chamavam "nous" e os romanos, "ingenium". A dedução racional difere dessa introspecção imediata pelo fato de que, a fim de alcançar conhecimento, ela aceita um princípio como uma premissa. A linguagem da sibila, no entanto, que não se preocupa com conclusão ou com demonstração mas, antes, com a visão direta, leva a um conhecimento que não retrocede a pretensas premissas. A única premissa é o poder absoluto do deus, e toda manifestação da profetisa é a palavra do deus; a linguagem aqui não implica processo, mas simplesmente detenção.

Mesmo o espaço antropomórfico perde seus limites nas mensagens da sibila: em suas palavras, lugares gregos são simultaneamente lugares do mundo romano e, no entanto, permanecem separados, o que, do ponto de vista racional, parece absurdo. A eliminação de limites de espaço é paralela à eliminação de sequências de tempo. Pela realização da visão o fluxo do tempo chega a uma detenção. Assim surge a simultaneidade que é a essência do tempo sagrado.

A Sibila não possui individualidade própria, ela é simplesmente o instrumento para a revelação do seu princípio. Na sua dependência do deus, ela se submete penosamente à autoridade. Ela nega sua individualidade, na experiência orgiástica que representa o símbolo e, portanto, a realidade da união entre o humano e o divino.

Estamos agora em condições de responder às perguntas que nos propusemos antes da interpretação do texto de Virgílio. A linguagem alusiva, pré-filosófíca, é entremeada de imagens; as relações não são o resultado de processos racionais e causais, mas surgem em introspecções metafóricas e pictóricas. Aqui são encontradas figuras estáticas, lado a lado, sem qualquer explicação — figuras e relações que, de um ponto de vista racional, pareceriam contraditórias.

Finalmente a linguagem semântica explode a ordem de espaço e de tempo: as relações entre momentos diferentes e mais remotos uns dos outros não são descobertos e estabelecidos racionalmente, mas por meio de metáforas.

2. O pressuposto da tragédia de Cassandra

Trata-se agora de mostrar novamente, utilizando um texto, a completa separação da linguagem alusiva (que, singularmente, está sempre ligada .ao fenômeno da visão) da demonstrativa, e assim confirmar que não há transição entre esses dois tipos de discurso. Essa introspecção constitui — como esperamos provar — o centro teórico da tragédia de Cassandra, no Agamenon de Esquilo. Mais uma vez num nível poético, não-filosófico, manifesta-se um tipo de introspecção que é de grande importância para a tradição ocidental. A tragédia de Cassandra consiste no fato de que a profetisa tenta transmitir aos homens, por meio de um ardil racional, a introspecção arcaica, visionária, mas ela mesma experimenta, no seu próprio destino, sua impossibilidade e seu paradoxo, e perece. Não existe continuidade entre os níveis alusivo, arcaico e demonstrativo.

Este exemplo revela o contraste entre o comportamento racional do ser humano que está constantemente tentando obter explicações (simbolizado pelo coro) e o comportamento irracional, arcaico da profetisa (personificado por Cassandra). O texto mostra, indubitavelmente, a incompatibilidade dos dois níveis. Mais adiante, o que é essencial na cena é o fato de que, na mesma medida em que Esquilo faz Cassandra cair do nível do profético, da alusão pictórica, para o do seu destino humano, ele também altera a sua linguagem: a fala semântica é substituída pela fala racional; somente isto torna possível um entendimento entre o coro e Cassandra; mas aí Cassandra, como profetisa, como visionária, deve morrer. O destino de Cassandra é a passagem da imortalidade para a mortalidade, do divino (possuída por deus) para o humano, do visionário para o explicativo.

O episódio de Cassandra é uma tragédia em si, dentro do Agamenon; ele enuncia fenômenos fundamentais que são teoricamente de grande significação. Este julgamento faz com que partamos da tese elaborada por K. Reinhardt no que diz respeito à interpretação desse episódio. Ele atribui ao mesmo, três funções puramente formais: ligar a tragédia de Agamenon à antiga história da Casa de Atreo, revelar o aspecto negativo da vida de Agamenon e, por último, contrastar o seu caráter claramente delineado no primeiro plano, com o fundo visionário, recôndito, da profetisa de Apoio. Tentaremos mostrar que a cena de Cassandra envolve problemas muito mais significativos.

A cena de Cassandra é montada no seguinte contexto: A Guerra dos Dez Anos terminou e Troia foi destruída. Cassandra, filha de Príamo, caiu prisioneira de guerra nas mãos de Agamenon, que a leva à casa real dos Atridas. Aqui, em Micenas, ele próprio encontrará a morte. O destino de Cassandra, portanto, está irremediavelmente ligado ao de Agamenon.

A tragédia Agamenon começa com o lamento das noites sem sonhos do guarda que, ano após ano, nutre esperanças de notícias sobre a queda de Troia. Do telhado plano do palácio real de Micenas ele aguarda sinais de vitória. A incerteza sobre o sucesso da expedição, assim como as distâncias desconsoladoras no tempo e no espaço, refletem-se em suas palavras. Os seguintes versos criam uma introdução à atmosfera estranha:

E quando, através de noites arrepiantes, encharcando de orvalho, eu guardo o leito, nunca visitado por sonhos. Meu leito - em lugar do sonho, o medo a meu lado está, e nunca minhas pálpebras se fecham completamente para o sono — ... , suspiro pela sorte infausta desta Casa, onde, como antes, boa estirpe já não dirige o leme.

O fogo repentino que fulgura na escuridão da noite, o sinal esperado, conduz o coro ao palco. O mensageiro que se aproxima apressadamente descreve a sorte dos guerreiros durante a mudança das estações. Este é o fundo, carregado de sofrimento, diante do qual se desenrola a tragédia de Cassandra como um episódio.

O campo lá se estendia diante das muralhas do inimigo.
Do céu e dos prados da terra
a chuva, o orvalho nos ensopava, estrago contínuo
das roupas, seu tecido cheio de bichos.
Nada se diga do inverno, o matador de pássaros,
Trazido, insuportável, pelas neves de Ida;
Do calor, quando no seu sono do meio dia a mar
sem uma onda, sem uma brisa, cochila
De que adiante queixar-se... ?

Aparece Clitemnestra: através de seu comportamento, os sinais do desastre iminente repentinamente se multiplicam. Agamenon, chegando como vencedor, receia que a inveja dos deuses seja despertada pelo fausto da recepção; a submissão de Clitemnestra o afeta como um gesto bárbaro, contrário ao conceito grego de dignidade humana, uma sensação sinistra brilha e atravessa a luminosidade exterior da festa.

E não deveras,...
. . . segundo as maneiras de príncipes bárbaros,
curvada até a terra, gritando plenamente, abrir tua boca.
Nem estendendo tapetes, fazer um caminho de inveja
Para mim! Somente aos deuses convém tal tributo honorífico;
Sobre beleza de matizes variegados, quando és mortal,
Caminhar nunca o consegui sem temor.

Cassandra entra em cena. O fundo da sua tragédia pessoal é bem conhecido: ela tinha sido escolhida por Apoio para sua amante e havia prometido ceder se ele lhe concedesse, em troca, o dom da profecia. Tendo recebido esse dom, ela se recusa ao deus que, assim, a pune de duas maneiras: a priva da visão e faz com que, no futuro, ninguém mais creia nas suas profecias ou compreenda suas palavras.

Usaremos a tragédia de Cassandra para examinar como Esquilo concebe a linguagem alusiva de um ser humano possuído pelo deus. O que nos interessa é saber se podemos obter, talvez por meio da relação dialética, representada pelo poeta, entre o coro (ou do líder do coro) e Cassandra, uma elucidação primária das relações entre as linguagens racional e alusiva.

Na realidade, a tragédia de Cassandra começa, de um ponto de vista puramente formal, com o verso 1072, em que a profetisa aparece pela primeira vez como personagem representante, isto é, com fala. Mas antes disso, ela já estava em cena como figura silenciosa, e o verso 1035 deveria ser tido como o começo da sua tragédia, pois justamente o seu silêncio inicial é de grande importância para compreender o seu comportamento como um todo. Sua tragédia termina com o verso 1330; aqui ela pronuncia suas últimas sentenças. Essas palavras, é verdade, não coincidem com a sua morte. Depois de ter atirado longe sua faixa de profetisa e com isso se despojado de sua natureza sagrada, Cassandra corre para dentro da casa, certa da sua própria morte; Esquilo o omite, mostrando-a já morta.

Não temos a intenção de interpretar toda a tragédia de Cassandra (i. é., versos 1072-1330 de Agamenon); desejamos apenas usar a primeira passagem principal (1072-1135) para ressaltar certos aspectos de Cassandra, sua maneira de falar e sua atitude diante do coro, a fim de exemplificar a relação entre o discurso alusivo-indica-tivo e o demonstrativo. A primeira passagem principal (1072-1135) tem o seu centro de gravidade na faculdade "visionária" de Cassandra, na sua posição estática, que no mundo racional dos homens é tido como cegueira racional. Essa característica de Cassandra, embora evidente também nas outras passagens, sobressai aqui com relevância especial, tanto que o coro (representando a atitude racional, humana e histórica) não consegue estabelecer conversação com ela. Na segunda parte principal da tragédia de Cassandra (1136-1215), que não analisaremos, há uma mudança na atitude de Cassandra em relação ao coro; há princípios de uma conversação, pois a profetisa, na qualidade de filha do Rei de Troia, entra na historicidade e, com isso, na explicabilidade da sua situação. Ela inicia sua narração relembrando sua juventude em Troia, passando pela tragédia de Helena, pela destruição da sua própria cidade, até entrar em detalhes da sua relação com Apoio. Assim, somente com a "explicação" da sua historicidade e da sua relação com o deus é que a sua figura começa a ser racional e historicamente inteligível; somente aqui se consegue encontrar uma causa "eterna" para a sua tragédia. Na terceira passagem principal (1215-1330) consuma-se o seu destino humano.

Como já foi dito, a tragédia de Cassandra provém da sua relação com Apoio. O’ tema do deus que ama sua profetisa deve ser compreendido no seu sentido mais profundo. A união com o deus sempre representa a suprema consagração de cada uma das profetisas de Apoio. Uma prova disto, por exemplo, é a seguinte nota que Orígenes faz no seu tratado apologético Contra Celsum: "Diz-se da Pítia .. ., enquanto ela, a profetisa de Apoio, está sentada à boca da fonte Castália, recebe seu pneuma através do seu colo feminino; dele impregnada, pronuncia ... oráculos solenes e divinos". É também neste sentido que a sibila eritréa era chamada "mulher e legítima esposa de Apoio".

A aparição de Cassandra no palco marca o verdadeiro começo da tragédia. Inicialmente, ela está lá parada, indiferente, como um corpo estranho, de tal forma que mesmo Clitemnestra não parece notar a prisioneira. Só descobrimos ser ela uma prisioneira, através das ordens do rei de conduzi-la ao palácio. Assim Cassandra aparece sob o signo do silêncio; ela nada ouve; não toma conhecimento do que a circunda. Seu comportamento é tão conspícuo que tanto a rainha quanto o coro tentam explicá-lo — embora de maneiras completamente diferentes. O coro interpreta sua atitude como de confusão bestial, enquanto Clitemnestra crê ver malícia e loucura no seu silêncio.

O espaço em que se encontra Cassandra naturalmente é inteiramente diferente daquele ocupado pelo coro. O espaço do coro é o palco: ou seja, a estrutura do visível, do "kosmos ópseós", a "mise-en-scène" como diríamos atualmente — e é precisamente este espaço que Cassandra inicialmente não percebe. O seu espaço, por outro lado, é divino; sua isolação vem da esfera divina, cuja essência é o invisível, o intangível e o inaudível. Com isto surge a separação que, de certa forma, proporciona o requisito para a sua atitude. Assim, também, suas distâncias espacial e temporal nos são tornadas perceptíveis, de forma que não nos admiramos que as tentativas de contato dos estranhos e do seu ambiente (o mundo histórico, racional) estejam fadadas ao fracasso.

Até aqui, o destino de Cassandra é um drama que — absurdamente, diríamos - se desenrola entre o visível e o invisível. Se linguagem significa comunicação, então o fato de que nem as palavras de Clitemnestra, nem as do coro conseguem chegar até Cassandra, prova que no seu próprio mundo (sobre o qual nada de específico ainda sabemos) ela se encontra completamente isolada. O seu silêncio não pode ser interpretado simplesmente como um "nada-tendo-a-dizer"; é antes a expressão de constrangimento por encontrar-se num mundo e numa ordem diferentes. Num estado de aprofundamento religioso, o homem se afasta das ligações dialógicas com o seu ambiente, de forma que as suas relações com outras pessoas — isto é, com a esfera histórica como tal — se tornam supérfluas. Toda palavra comunicativa parece sem sentido quando tudo está presente no êxtase, no desligamento de uma visão interna. O silêncio suprime, então, o domínio da historicidade.

3. O elemento visionário e pictórico na linguagem semântica

A apresentação verdadeiramente dramática dessa tragédia episódica começa com o lamento de Cassandra, que tem aspecto quase desumano do grito de dor de um animal:

Cassandra: Oh, oh, ai, oh, ai, ah!
Apolo, Apolo!

Líder do Coro: Por que choras tu teus ós e ais por Loxias?
Um deus como ele nada tem a ver com os
que choram.

Cassandra: Oh, oh, ai, oh, ai, ah!
Apolo, Apolo!

Líder do Coro: Novamente ela invoca o deus com queixumes
profanadores,
E a ele não convém estar perto de tais
lamentos.

(Cassandra desce do carro, olhando o pilar de pedra de Apolo)
Cassandra: Apolo, ó Deus Salvador,
Raptor, Deus da minha desgraça,
Pela segunda vez me lanças à desgraça.

Líder do Coro: Ela está anunciando, assim parece, sua própria aflição.
Há algo de divino mesmo no peito de escravos.

Cassandra: Apolo, ó Deus Salvador,
Raptor, Deus da minha desgraça:
Ah, para onde me conduzes: a que casa?

Líder do Coro: À Casa dos Atridas ainda não o sabes?
Eu te digo; e acredite-me, isto é verdade.

Quem é Cassandra? Homero   a menciona na Iliada como a filha do Rei de Troia, mas não se aprofunda no seu dom fatal da profecia. Píndaro   a descreve como profetisa. De fato, dos textos que chegaram até nós, o Agamenon proporciona a primeira interpretação compreensiva da figura de Cassandra; o centro de gravidade da sua tragédia "externa" está no mito de Apolo e sua mântica amada. Mas estaria Esquilo interessado apenas nessa estória, ou numa tragédia mais profunda e que enuncia um fenômeno fundamental da existência humana?

Um rápido panorama da primeira passagem principal (1072-1135) da tragédia de Cassandra, que analisaremos: — Na primeira parte (1072-1089) dessa passagem principal, o ponto crucial é a condição "mântica" de Cassandra e o seu lamento por isso. Ela sofre com a sua relação estática com Apolo. Portanto, a ênfase recai inicialmente sobre o seu estado emocional. Na segunda parte (1090-1099), manifesta-se a sua faculdade visionária. Ela se dirige primeiro ao passado da Casa dos Atridas. Poder-se-ia objetar — e isto é expresso pelo coro — que isso não requereria qualquer dom profético pois, em Micenas, a tragédia relacionada com a casa real é do conhecimento geral. Mas como Cassandra, uma bárbara, foi para lá arrastada de um país estrangeiro, é de se supor que ela nada soubesse desse destino trágico. Somente na terceira parte (1099-1135) é que Cassandra dirige seu olhar de profetisa para o futuro imediato: o iminente assassinato de Agamenon.

Em toda a primeira passagem principal (1072-1135) da sua própria tragédia, Cassandra aparece principalmente para aplicar a sua faculdade profética ou, mais exatamente, para indicar a tragédia maior que está para abater-se sobre Agamenon e Clitemnestra e que é a realização da maldição da Casa dos Atridas.

Com sua atitude estática, no começo da cena, Cassandra demonstra que o seu espaço e tempo não são os mesmos que determinam o "Kósmos ópseõs". Dois mundos — o de Cassandra e o do coro (que, ao mesmo tempo é o nosso, o mundo dos espectadores) — estão, lado a lado, completamente separados. O lugar que admite esses dois mundos simultaneamente não parece racional mas, antes, esfera de sonhos, onde a lógica não tem significado. Se nós, espectadores, o reconhecemos, então nos encontramos no domínio do irreal, ao qual Esquilo nos quer introduzir. O lugar desse espetáculo não revela ainda, em si, qualquer indício da tragédia que está para acontecer; pelo contrário, uma festa está sendo preparada. Nada de assustador aconteceu ainda. Apesar disso, a presença do elemento mítico — o poder de Apolo e seu impacto sobre Cassandra — já nos expõe ao sinistro.

A esfera mítica na qual Cassandra se movimenta, justifica a inconsciência que ela, como profetisa (consagrada pelo deus), compartilha com o poeta. Segundo o conceito grego, os poetas são anunciadores do originário e do sagrado . Platão afirma que a função essencial do poeta é guiar a alma que traz em si o sagrado, e como tal, é "entusiástica" (éntheos), "dirige-se para as coisas". Trata-se aqui de coisas que ocupam e absorvem a alma. Diz Sócrates ao rapsodo Ion  : "Se recitares bem os versos e conseguires comover a plateia — quer cantando como Ulisses transpôs a soleira, fez-se conhecido dos pretendentes e espalhou flechas a seus pés; ou como Aquiles acorreu contra Heitor; ou ainda algo melancólico sobre Andrômaco, Hécuba ou Príamo —, estando plenamente consciente ou fora de si, tua alma entusiasta acreditará estar com as coisas que canta, estejam elas em Itaca, Troia ou onde quer que se passe a ação do poema". "Estar com as coisas não tem nenhum significado especial pois a palavra ’prâgma’ abrange um amplo sentido de sentimentos, dores e esperanças. Isso se refere ao fenômeno misterioso que Hamlet, depois da declamação dos artistas, resume na pergunta ’O que é Hecuba para ele?’"

Através da sua relação especial com Apolo, por intermédio da sua atitude estática, por meio da sua "visão" - como uma evasão da realidade cotidiana e racional — Cassandra mostra aos gregos quão intimamente está ligada à revelação do divino, à fuga para um outro mundo. Assim sendo, a poesia — o acontecimento de algo "novo", algo enorme — é vista como a revelação do divino, uma revelação necessária à humanidade. Desolado, sem sentido e desumano é um mundo sem os sinais originários e divinos e sem pontos de orientação. Ocupar-se de poesia significa reconhecer e abrir-se a essa realidade "nova" e transcendente (que não deriva do mundo sensorial). O conceito antigo era: "É o próprio deus quem o diz, e nos fala somente através deste (poeta)".

Como é construída a linguagem semântica de Cassandra? Sua transição do silêncio para a fala começa com sons, não com palavras. Deveríamos ter o texto grego diante dos olhos, para captar a enormidade puramente fonética das exclamações. A voz de Cassandra irrompe como a de um animal selvagem ferido. O caráter sinistro dessa erupção é o agouro dos acontecimentos iminentes.

Cassandra: Oh, oh, ai, oh, ai, ah! Apolo, Apolo!

A sua primeira palavra articulada é um nome: Apolo. Sons, como nomes isolados não constituem a língua; eles existem antes de qualquer diferenciação entre verdade e erro; eles são, em essência, "exclamações", que apontam ou que invocam alguma coisa. Por meio dessa fala singular de Cassandra, Esquilo salienta o caráter imediatamente alusivo da linguagem sagrada.

A peculiaridade dessa linguagem sagrada, que aparece nos verses subsequentes, consiste no fato de que sons e nomes, embora ligados entre si, não estão ordenados em qualquer sentido lógico ou subordinados uns aos outros: acham-se em ordem puramente associativa. Repentina e inesperadamente, é invocada por ela a compreensão de conhecimentos não deduzíveis. O texto diz:

Cassandra: Apolo, Ó Deus Salvador,
Raptor, Deus da minha desgraça,
Pela segunda vez me lanças à desgraça!

A repetição do nome de Apolo é seguida, inicialmente de um atributo: "agyiátês", protetor de estradas. No palco há um pilar de pedra de Apolo. Pilares de Pedra desse tipo eram erigidos frequentemente, na Antiguidade, em pontos visíveis, como sinal de estrada, e símbolos de proteção. Repentinamente emerge uma associação de ideias: a palavra "Apolo" tem um significado duplo; o nome do deus soa exatamente como o particípio presente do verbo "apóllymi" (arruinar, destruir). Salvação e destruição: dois acontecimentos contraditórios, tendo ambos marcado o destino de Cassandra. O protetor de estradas é, simultaneamente, aquele que a levará à morte. Esses dois pronunciamentos de Cassandra expressam os seus sofrimentos anteriores e o seu receio do futuro. A associação de ideias, aqui, demonstra uma forma de ligação significativa e alógica. Assim, das primeiras sentenças de Cassandra podemos concluir que as suas relações com Apolo a transportam a uma esfera de contradições racionais e de incoerência lógica.

É o seguinte o texto da segunda parte:
Cassandra: Ah! ah!
Detestado pelos deuses, testemunha de muitos
Parricídios, gargantas cortadas!
Um matadouro humano, o chão encharcado
de sangue!

Líder do Coro: A estrangeira parece perspicaz, como um cão
de caça
Que fareja, procurando a quem já encontrou:
o assassino.

Cassandra: Através de testemunhas, aquelas lá, tenho
prova suficiente:
Soltando gritos - as crianças - abatidas - e
Pedaço de carne - assado - por seu pai -
consumido!

Líder do Coro: Deveras, sobre teu profetismo já ouvimos há muito;
Mas os profetas estão fora de lugar entre
nós.

Aqui aparece a faculdade especial de Cassandra: primeiramente ela se dirige ao passado da Casa dos Atridas de forma que, por enquanto, essa faculdade se manifesta de forma epi-mética em vez de pro-mética.

As palavras de Cassandra transmitem visões: lugar e tempo do passado são descritos no texto como "abandonado pelos deuses" (misótheos); o "visto", que imediatamente toma forma na designação mais distinta de "parricídios", finalmente desemboca na imagem inequívoca de "gargantas cortadas". A própria Cassandra parece espantada com a "imagem" que ela viu; ela lhe é estranha, não pode explicá-la. A interpretação de todo o contexto acontece repentinamente: não através de explicação lógica, mas de uma metáfora; o contexto é encontrado na "imagem": um matadouro humano. O "eidos" seguinte - "gargantas cortadas" - está de certa forma isolado, irreal nesse espaço sangrento, pois no momento não pertence a ninguém; é um sinal de agouro, que dá um sentido terrível ao todo. Mas a moldura esboçada, que se encontra diretamente sob esse "signum" sinistro, está plena, para nós, de significados concretos e históricos, que se Teferem ao passado: aqueles de "crianças abatidas"; a relação com a refeição repulsiva de Tiestes é racionalmente inteligível para nós pois vivemos na história, mas não o era para Cassandra, que nada "sabe" a respeito, que apenas "vê".

Na sua fala visionária, o tempo desaparece, pois não existe ordem cronológica na sua visão. As ações e acontecimentos individuais se fundem em um único foco. Na linguagem da profetisa, como os versos seguintes mostram, as ligações com os substantivos podem ser omitidas, pois o "presente visto" em todo o seu horror está diretamente diante dos olhos de Cassandra:

Soltando gritos - as crianças - abatidas - e
Pedaço de carne - assado - por seu pai - consumido!

As frases em particípio têm um efeito violento: "soltando gritos", "assado", "consumido", os substantivos que se sucedem abruptamente ficam suspensos no ar sem qualquer coerência lógica. Aqui não há movimento progressivo, racional ou cronológico, pois o que temos é uma imagem completa. Passado e futuro lá estão como um presente concluído a todo instante da experiência estática. O tempo corre, como um todo que tudo envolve, à presença da visão. Assim os acontecimentos mantêm-se lado a lado sem se desenvolver; eles são "visões instantâneas" que envolvem o presente temporal — i. é., do "instans", no sentido de "stare-in": repousando sobre algo que é permanente — e a visão ou a vista.

O termo "instante" não deve ser compreendido, aqui, como um fragmento transitório de tempo, pois é só no avistar, que está fora do tempo, que acontece a história de Cassandra. O "instante" é a forma como o originário — o não-deduzível — é sofrido, pois como primário, divino, ele não permite mediação ou premissa. Daí o caráter fulminante e resplandecente do originário e sua experiência: se, portanto, o "instantâneo" representa um momento essencial na experiência do originário é compreensível que os escolhidos e possuídos pelo deus, atingidos pelo instante como por uma flecha, se transformem e se voltem para o divino. Essa transformação é um "lembrar-se" como volta ao "arche" divino.

A consciência dessas conexões ainda estava viva na tradição ocidental até o fim da Renascença. Giordano Bruno  , no seu Paixões Heróicas, interpreta o versículo vicit instans referindo-se à flecha de Apolo: "Estes não são ferimentos que o ferro ou qualquer outro material possa inflíngir pelo vigor dos músculos; antes, flechas .. . de Febo ... do Sublime, Apolo, que, com seu próprio brilho, e não com brilho emprestado, desfecha suas flechas, i. é., seus raios, de todos os lados e de todos os tipos e em número tal quantos são feitos pelas múltiplas feições das coisas . .. Assim flecha dupla era atirada como se o fosse pela mão de um guerreiro enraivecido; era tanto mais rápida, mais poderosa, mais afiada, quanto mais ele (o atingido pela flecha) tivesse antes se mostrado fraco e negligente. Quando, dessa forma, ele era, pela primeira vez, entusiasmado e seu espírito iluminado, o ponto e o instante vitoriosos eram alcançados; e deles se dizia: Vicit instans’".

A observação de Reinhardt de que Cassandra assume de maneira puramente formal o papel de mensageiro é, portanto, insustentável; entre o relatório de um mensageiro sobre os acontecimentos que a audiência não vê e sobre os quais nada sabe, e a comunicação de Cassandra de natureza visionária, existe uma diferença importante. O mensageiro sempre tem uma função explanatória com relação à audiência; fala de forma racional; pode explicar o que sabe e o que tem a dizer. O campo visual de Cassandra, ao contrário, é inexplicável, pois a fonte da sua visão consiste de imagens que não podem ser comunicadas aos outros a não ser que esses já participem originalmente do mesmo.

4. A relação entre linguagem explicativa e indicativa: Cassandra e o Coro

Sob que condições é possível um diálogo entre Cassandra e o Coro?

Cassandra: Vós oh! deuses, o que prepara ela agora?
Que nova calamidade, que grande, Grande, ela planeja lá na casa: desgraça
Insuportável aos amigos, incurável? E
defesa -
É inacessível!

Líder do Coro: Aqui estou perplexo, sobre o que essa
profecia significa;
A outra eu sabia; a cidade inteira a grita!

Cassandra: Oh ignóbil este então é teu alvo:
Teu companheiro de cama, teu esposo
Gentilmente atraído para o banho - como
posso pronunciá-lo?
Mas depressa estará feito; já estendidas mão
sobre mão para apressar o feito!

Líder do Coro: Ainda não compreendi, agora a palavra do
enigma.
Como parece obscura para mim a palavra da
vidente

Cassandra: Ah, Ah, ai, oh, ai! O que é? O que acontece?
Uma rede de pesca de Hades?
Uma cilada para apanhar o esposo, um cúmplice para
O crime! Discórdia, insaciável à raça.
Aclama com alegria o assassinato, perpetrado
por pedradas somente?

Líder do Coro: Que deusa da vingança há na casa
Rejubilar-me? Tua palavra não me traz
alegria.

Coro: Ao meu coração se precipita, amarelo de
bílis,
O sangue, como a um homem derrubado por
uma lança,
Quando o último raio de luz da vida está
descendo
E rapidamente se aproximam noite e morte.

Cassandra: Ah, oh; veja lá! mantenha longe da vaca
O touro! Em manto de rede
Capturando-o, violentamente, com os chifres
negros, poderosa arma
Ela golpeia; ele cai na torrente do poço,
Eu falo do pérfido assassinato no banho.

Líder do Coro: Não me vanglorio de ser forte na interpretação de profecias,
Mas, certamente, aqui pressinto desastre".

Aqui a visão de Cassandra não é mais epi-mética, mas pro-mética. Ao mesmo tempo, suas relações com o coro se esclarecem.

Já no começo da tragédia de Cassandra, podia-se ver que o coro estava tentando, em vão, estabelecer um diálogo com a vidente. Sua primeira reação foi a reprovação de que eram impróprias tanto a invocação do deus Apolo por Cassandra, como a maneira pela qual ela o fez; e logo, considerando suas exclamações como absurdas e inconvenientes. Cassandra não ouve as palavras do coro, ela repete sua invocação (1076) e novamente o coro reage de maneira racional (1078). Mais uma vez Cassandra não toma conhecimento; quando ela pergunta para onde o deus a levou e o coro responde, ela não consegue ouvir. Até a passagem citada acima, o coro não desiste, por preço nenhum, de estabelecer um diálogo com Cassandra, tão pouco consente em alterar sua atitude explanatória. Ê verdade que, quando Cassandra evoca imagens do passado da Casa dos Atridas, o coro também recorre a uma metáfora — uma imagem transferida — para explicar a atitude de Cassandra. Compara o pressentimento da profetisa com o faro de um cão de caça (1093). Com isso, pela primeira vez algo de novo acontece ao coro: uma renúncia temporária ao puramente racional, embora apenas para apoiar a explicação racional. A metáfora surgiu quando o processo racional mostrou-se inadequado. No entanto, é muito característico que o coro renuncie imediatamente ao uso da metáfora; ele tenta rejeitá-la depreciativamente, pois pisou em solo perigoso ao deixar o plano puramente racional que lhe é familiar. A fim de explicar a atividade de Cassandra, o coro se refere à sua "bem conhecida" reputação (1098). No nosso texto se repete, agora, a tentativa de depreciar racionalmente o poder misterioso sob cujo ditado Cassandra fala, e de refutar tudo quanto seja "extraordinário" no seu dom profético: no que diz respeito ao. passado, todos o conhecem ("... A outra o sabia; a cidade inteira o grita!" 1106). Mas o coro admite imediatamente: no que concerne ao futuro, que essa explicação não é possível ("Aqui estou perplexo, sobre o que essa profecia significa", 1105). Apesar disso, mesmo assim o coro retira-se para a racionalidade. Ele parte de premissas que lhe são familiares (se são verdadeiras ou não, o Líder do Coro não pode julgar), e tira as conclusões que correspondem à faculdade especial da razão, de "ratio": uma deusa de vingança está em atividade (1119), um desastre iminente foi previsto (1131). Enquanto o coro procurar hipóteses racionais para compreender os depoimentos de Cassandra, estará tateando no escuro sem encontrar acesso a eles; mas, à medida que é gradativamente arrastado ao mundo pictórico de Cassandra, começa — sempre dentro do contexto visual de Cassandra — a deduzir certas conexões. Com a asserção de que não é perito em mensagens divinas (1130), o Líder do Coro reconhece a separação essencial entre ele próprio e Cassandra. Apesar disso, "conclui" que o desastre é iminente, ao adivinhar a presença das Eríneas. Em sua atitude racional o coro, acertadamente, sente a sua própria impotência, pois onde a razão não consegue ser suficiente, encontra um campo que não lhe é "natural": o campo do sinistro.

O contraste entre Cassandra e o coro é óbvio: cada um se movimenta num espaço e num tempo próprios. O coro se movimenta no campo do racionalmente explicável, e num tempo que faz o futuro parecer simplesmente como possibilidade. Neste texto, ele fala na forma gramatical usada para relatar o passado. Sua linguagem, consequentemente, é temporal, no sentido em que se esforça por captar e refletir o desenrolar dos acontecimentos e suas correlações. O espaço de Cassandra, no entanto, é determinado pela simultaneidade da visão na qual se fundem os momentos do tempo e os tornam partes de um instante irremovível, necessário e não mais apenas possível. Com isso, o coro perde terreno no que tange à sua faculdade dedutiva. Mantendo seu dom "profético", Cassandra fala uma linguagem pictórica que se distingue da linguagem do coro por se desintegrar em frases no particípio. O contraste entre o mundo de Cassandra e o do coro ilustra, definitivamente, o fato de que a atitude semântica não pode ser atingida ou deduzida por processo lógico.

A linguagem indicativa é "visionária", carregada de ideias, de imagens; também neste texto o elemento pictórico ocorre sempre; ele agora não está mais relacionado com o passado, mas com o futuro: o assassinato de Agamenon. As paixões, os instintos que prevalecem são representados como uma passagem escura, através da qual o animal sacrificial é levado à destruição (".. . mantenha longe da vaca/o touro! Em manto de rede/Capturando-o, violentamente, com os chifres negros, poderosa arma/Ela golpeia; ele cai na torrente do poço", 1126): a onda d’água provocada pelo assassinato se elevará como símbolo do poder da morte.

A linguagem metafórica, visionária (touro, vaca) vence passado e futuro na presença da visão, e permanece suspensa num eterno presente. Mesmo o feito que está sendo preparado é sugerido por uma mão estendida no espaço vazio, ou seja, o desenrolar do ato é concentrado numa mão que é seguida de outras mãos e de outros atos ("... teu esposo/Gentilmente atraído para o banho/já estendidas mão/sobre mão para apressar o feito!", 1110).

Nenhuma palavra de explicação passa pelos lábios de Cassandra, pois ela mesma de nada sabe sobre causa e efeito: a própria morte é simbolizada por uma rede na qual o animal será apanhado; o ardil, a armadilha começa a "parecer-lhe evidente" ("... o que acon-tece?/Uma rede de pesca de Hades?/Uma cilada para apanhar o esposo, um cúmplice para/o crime!" 1115).

Mais uma observação: sem nos aprofundarmos mais no desenvolvimento da tragédia como um todo, desejamos assinalar uma característica básica da mesma, que contribui para elucidar o relacionamento entre Cassandra e o coro. Na segunda passagem principal (1136-1214), subsequente ao texto por nós analisado, tem lugar a transição da esfera estática, mântica de Cassandra, para a esfera humana; elementos racionais vêm ao primeiro plano e assim proporcionam o começo de uma relação dialógica entre Cassandra e o coro. Esse relacionamento fará com que a profetisa conte a sua própria história, isto é, descreva ou explique sua vida em Troia, a destruição da cidade e suas relações com Apolo.

Como acontece essa transição? Cassandra começa com um lamento sobre a sua própria morte, embora ela aqui ainda se dirija ao deus e não ao coro. Nessa fala já não mais pergunta ao deus como fez no início da sua aparição em cena — onde ela está, mas para que ele a trouxe aqui; assim, pela primeira vez, ela pede uma explicação, uma razão por estar ela aqui.

Por que me trouxeste - a coitada — aqui? Somente para que aqui morra; senão, para quê?

Atingindo, com essa pergunta, o plano da explicação e abandonando o mundo da indicação, coloca-se sua realidade histórica e ela mesma se desloca para uma estrutura histórica determinada pelo tempo e pelo espaço. É característica a maneira pela qual o poeta atrai Cassandra do seu plano, puramente semântico e mântico, para o mundo racional, histórico, e assim torna, finalmente, possível ao coro, estabelecer com ela um diálogo. Esse emprego da conversação torna-se um sinal da sua saída do mundo do inexplicável, do originário, do divino. A mudança é efetuada por intermédio de uma metáfora, como se esse fosse o único caminho possível entre os âmbitos racional e semântico. Depois do lamento de Cassandra sobre seu destino, depois da sua pergunta que exige uma explicação de Apolo, o coro irrompe com as seguintes palavras:

Enlouquecidos estão teus sentidos, tocados pelo divino, sobre
Ti mesmo te lamentas em alta voz
Canto que não é canto! - Como quando, marrom dourado,
Nunca cansado de chamar, mágoa, só dor, dor em mente,
Itysí oh Itys! soluça queixoso o rouxinol
Sua sorte, de dor ornada.

O coro guia Cassandra de volta ao mundo humano através de uma imagem. Essa imagem — de Procne, o rouxinol — traz-lhe saudade do mundo humano ao qual originalmente pertencia mas, ao mesmo tempo, a toca em relação ao seu destino iminente. Pela primeira vez, estimulada por essa imagem, Cassandra ouve as palavras do coro e a elas reage:

Cassandra: Oh, sobre o destino do rouxinol do doce cantar! Envolvente lhe criaram figura alada os deuses, e doce existência, livre de lágrimas; Mas a mim aguarda o golpe do machado de duas lâminas!

A pergunta que o coro faz a Cassandra e a conversação subsequente, isto é, o princípio de um diálogo entre a representante do mundo semântico e o representante do mundo racional (o coro), apoiam-se numa imagem, uma metáfora. Essa metáfora exerce impacto patético e desperta o desejo (a paixão humana!) que atrai o ser humano do domínio semântico, ao mundo dos acontecimentos, ou seja, ao domínio do tempo dominado pela morte.

O primeiro diálogo entre Cassandra e o coro, portanto, dá-se com a pergunta "por que" e pelo efeito de imagens patéticas. Na esfera puramente semântica, ao contrário, houve apenas a presença de imagens, de indicações; faltavam explicações causais. De acordo com essa mudança abrupta, também a linguagem de Cassandra muda: de repente, ela usa termos de passado, indispensáveis numa perspectiva temporal.

Cassandra: Oh águas pátrias do Scamandro!
Outrora às praias do teu curso, eu, criança infeliz,
Cresci, pajeada carinhosamente. . . Oh!
A miséria, a miséria da cidade, da tão arruinada cidade!

O coro admira-se com o fato de que até mesmo as imagens por ela agora usadas provenham de lembranças humanas.

Coro: Nitidamente, claro demais, tu agora pronúncias tua palavra!
Uma criança, ao ouvir-te, poderá compreender-te.

Atraída pelas imagens do passado, Cassandra também fala sobre suas relações com Apolo (1202). O texto não justifica a conclusão de que Cassandra se tenha prometido ao deus por amor mas, antes, com uma determinada intenção. Ela queria receber a dádiva concedida pela posse do deus, a fusão com ele — o êxtase divino da profetisa que elimina a ordem da sequência temporal da causa e efeito. Essa dádiva divina — de tudo abranger num instante — Cassandra não a queria só para si; ela queria comunicá-la aos outros; ser a mediadora entre o divino e o humano. Entretanto, sua verdadeira meta era obter a dádiva por meio de um ardil. Ardil é uma intenção racional, e nenhum processo ou atitude racional podem jamais levar ao divino, as origens do ser, pois estas condicionam aquelas. A tragédia de Cassandra, a maldição que a persegue, baseia-se em seu racionalismo, tão surpreendente quanto possa parecer. Já que é impossível captar o divino por métodos racionais, o não reconhecimento desse fato torna-se maldição. O racionalismo também impede o coro de conseguir qualquer comunicação, qualquer diálogo com Cassandra enquanto ela permaneça no plano semântico. Sua figura é sinistra pois é sua intenção racional comunicar o eterno ao mundo histórico e racional; aos homens faltam os meios para compreender seus pronunciamentos e suas iluminações por intermédio da razão. Esse acesso só pode ser atingido pelas imagens. Na linguagem semântica, a "visão" tem, portanto, absoluta predominância sobre os outros sentidos.


Ver online : Ernesto Grassi